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Inaceitável fazer dinheiro a qualquer custo

Teremos slot machines onde antes havia património?! Há túmulos e claustros para todos os gostos e bolsas. Cenários inesperados para chás dançantes ou copos de água. Coitados dos arquitetos projetistas a quem faltou visão para destinos tão comezinhos!

Nestes últimos dias tenho andado a pensar qual o espaço patrimonial que prefiro para celebrar o meu aniversário. Entre as Capelas Imperfeitas ou o topo da Torre de Belém, o deslumbramento é imenso. Concluí que as Capelas Imperfeitas, como se sabe e a designação não esconde, não estando completas, são desadequadas, era o que me faltava, um espaço inacabado! Por outro lado, do topo da Torre de Belém desfruta-se uma vista inigualável para além de se entranhar a sensação de partir, brisa pela frente, com a certeza (por instantes que seja) de deixar para trás mais esta opção impensável e inesperada do Ministério da Cultura. Alugar espaços patrimoniais, fazer render os testemunhos da nossa identidade. Tenho dificuldade em acreditar que isto que escrevo é mesmo o que se prepara. Ideia mirabolante. Nesta senda, o Ministério não tem motivos para se acanhar e nada o impede de ajudar mais à festa organizando listas de acordo com diversos perfis. Rufa o marketing! Por exemplo, para aqueles com preferências necrófilas, locais não faltam. Nos Jerónimos, a vasta sala onde se encontra Herculano, parece muito apropriada para um chá dançante. Os convivas mais letrados poderão olhar para o túmulo e refletir um pouco sobre a figura íntegra, avesso a trocar a honra por ganhos fáceis enquanto mordiscam um rissolinho. Já os mais românticos, encontrarão um cenário amoroso optando pelos túmulos de Pedro e Inês, testemunhos superlativos da escultura medieval a convidar a uma encenação à altura. Felizmente que há túmulos para todos os gostos. E claustros! Com ou sem fontes, com ou sem flores, com ou sem laranjeiras. Há claustros para todas as bolsas (o dos Jerónimos ou de Alcobaça destinam-se a contribuintes abrangidos pelos escalões mais altos do IRS, claro), emolduram sempre bem um copo de água, circunstância a que os arquitetos manuelinos ou renascentistas ou maneiristas não atribuíram muita atenção. Imperdoável, pois os claustros não oferecerão assim todos os cómodos indispensáveis. Espaços patrimoniais fechados também abundam. Sugiro se comece pelo Palácio da Vila onde, na Sala dos Brasões, se poderá degustar um travesseirinho de chila com um cálice de Porto... enquanto ansiosamente se procura o brasão dos antepassados no teto, fixado vai para 600 anos. Ah, património, destino improvável!


O ridículo é tremendo mas o mais grave é mesmo a indignidade da ideia

O ridículo é tremendo mas o mais grave é mesmo a indignidade da ideia. Para quê cursos universitários sobre património? Para quê uma direção geral dirigida para o património? Para quê matérias sobre passado, identidade ou património nos programas escolares? Para quê candidaturas a património universal? Se a Unesco não tem uma palavra a dizer, nós temos porque antes de ser universal, o património é nosso. Quando estivermos em espaços patrimoniais, facilmente esqueceremos a razão daquele lugar (o que representa, quem viveu lá, o que foi decidido entre aquelas paredes, quem desenhou e pintou aquele espaço, no processo histórico qual o exato significado daquele lugar) enquanto o nosso olhar guloso estará a fazer cálculos sobre o potencial do local para render umas lecas. Com franqueza! A ideia é igualmente perigosa senão vejam-se os estragos provocados por filmagens no Convento de Tomar e para os quais se aguarda uma avaliação… [Expresso, 10 Junho] como se o património pudesse estar sujeito a intervenções sucessivas só porque há dinheiro para pagar e remediar. A ideia é indigna, o à vontade com que se avança a proposta é assustador, o novo riquismo é detestável, o presságio incontornável porque há mais património para além do arquitetónico. Que tal cobrar para folhear um manuscrito iluminado do século XIII ou um impresso do século XV? O património como fonte de emoções fortes e adrenalina. O dinheiro não é tudo, o Ministro da Cultura (da Cultura!) tem obrigação de ter essa sensibilidade para não sancionar o aluguer do que deveria ciosamente preservar.


 

Acresce que os eventos sociais se aconchegam com um banquete ou beberete em cujas ementas, regra geral, consta um prato quente. Prato quente, cozinha, gás, eletricidade... tudo potenciais focos de incêndio. Os bombeiros não gostam nada destas situações propícias ao desastre, às vezes impedem-nas. Que sorte a do património ter um impedimento como aliado! Pronto, eis que vai chegando o argumento de que tudo será assegurado por serviços de catering... pois, mas o bacalhauzinho com natas exige aquecimento na hora. Apostamos sempre na sorte e não na segurança, coisa de somenos, apesar de ainda nos arderem as barbas por causa das joias da coroa que viajaram até à Holanda apenas com bilhete de ida…


 

Não vale a pena referir a preparação de regulamentos [Expresso, 10 Junho], quais paninhos quentes, ou no estabelecimento de princípios para estes alugueres. Os princípios começam e terminam no próprio património, o que ele significa, o que ele vale do ponto de vista da história. É usual recorrer-se a espaços patrimoniais para concertos, conferências, exposições, até velórios. Chega, não? As festas, por natureza, são menos ordenadas e metendo comida, ficam desordenadas de todo. Não, não pode haver cedências.

 


O mínimo que podemos fazer é preservar o passado, assegurar-lhe um futuro digno e duradouro. Algum pudor não caía mal neste episódio

De facto, o Primeiro Ministro anunciou em Serralves que a Cultura teria mais verbas em 2018 e o Ministro da Cultura apressou-se a replicar esta intenção todo contente [Expresso, 10 Junho], muito confortável com a decisão. Não parece ter mexido um dedo ou vir sequer a mexer para exigir mais. Porque haveria de se incomodar quando, à mão, dispõe de um património arquitetónico, qual galinha-dos-ovos-de-ouro, para garantir receitas?! Verdadeira árvore das patacas inadequada, causa de vergonha e chacota. Sr. Ministro, reconsidere, abandone ideia tão peregrina. O mínimo que podemos fazer é preservar o passado, assegurar-lhe um futuro digno e duradouro. Algum pudor não caía mal neste episódio e, em vez do vil metal, encaixávamos credibilidade. Ora aí está, uma política patrimonial credível.

Sobre o/a autor(a)

Bibliotecária aposentada. Activista do Bloco de Esquerda. Escreve com a grafia anterior ao acordo ortográfico de 1990
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