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Identificar fascistas

Tinha os inimigos identificados ao escrever a frase-panfleto na guitarra. "Esta máquina mata fascistas", o seu instrumento passava a balear a seis cordas em 1941.

Após o auge da Grande Depressão nos anos 30, devastadora, Woody Guthrie já romantizara brilhantemente os proscritos do sistema como aqueles heróis épicos e mundanos, maiores do que a vida, migrantes, lutadores-poesia com armas de formiga a construir os seus castelos pelo bem comum. Agora, a guitarra apontava aos nazis. E era fácil identificá-los porque os fascistas nunca se souberam esconder. Cerca de oito décadas depois, o tempo que passa já relativiza o passado recente e o fascismo recrudesce em muitos dos países que o germinaram. A memória só precisa de um pequeno lapso de tempo para se esquecer de tudo. Por muito que não chegue para lhes destruir o carácter, é urgente chamá-los pelo nome. Antes como agora, fascistas são objectos políticos bem identificados. Não podemos ser cúmplices.

Woody Guthrie já romantizara brilhantemente os proscritos do sistema como aqueles heróis épicos e mundanos. Agora, a guitarra apontava aos nazis

As urnas não são latrinas. E é por isso que é importante dizer que, com toda a probabilidade, o Brasil vai eleger um fascista a 28 de Outubro. Político com 30 anos de carreira a tiro, Bolsonaro não é um fascista qualquer. Defensor da tortura, (embora pense que "o erro da ditadura foi torturar e não matar"), misógino selectivo, defensor de salários diferentes consoante o sexo, o anunciado futuro presidente do Brasil preferia ver morrer um filho do que o ver homossexual, desejava "fuzilar a petralhada" e talvez o faça quando for eleito. Com 46% dos votos na primeira volta, alimenta-se do ódio a um PT aparelhista que tomou o Estado por conta. Com a Direita democrática brasileira em vias de extinção e incapaz de estancar a sangria do seu eleitorado para a extrema-direita, nem lhe sobra a noção do que impende sobre a liberdade à custa de não se afastarem de Bolsonaro. Compete-nos a nós, então, identificá-lo pelo seu género político.

Não há como esconder o falhanço da democracia e da esperança no Brasil. Entretanto, vende-se em Portugal a fórmula de branqueamento pelo peso da distância geográfica. Dizem esses que só quem lá está é que sabe. Foi assim com Trump ou Chávez (que, curiosamente, Bolsonaro idolatrava). Foi assim com os fascistas Le Pen, Orbán, Kurz ou Kaczynski (menos porque, ainda assim, são "europeus"). Querem-nos retirar o direito de identificar fascistas já submetidos ao teste de algodão. Querem que voltemos às reuniões de tupperware, conservando os ingredientes para um caldo a entornar. Compete-nos a nós, então, identificá-los pelo seu género policial: cúmplices.

Artigo publicado no “Jornal de Notícias” a 12 de outubro de 2018

Sobre o/a autor(a)

Músico e jurista. Escreve com a grafia anterior ao acordo ortográfico de 1990.
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