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Hipermercados: descontos no cartão, preços altos no cartel

A prática de cartel prejudica os consumidores, pois favorece a concentração de ganhos em poucos grupos da grande distribuição a partir de uma fixação concertada de preços.

O setor dos hipermercados foi dos que mais lucrou com a crise pandémica. Com o confinamento e o teletrabalho, muitas pessoas deixaram de recorrer aos restaurantes e aumentaram o consumo de bens essenciais nas suas residências. O grupo Jerónimo Martins (dona do Pingo Doce e do Recheio) distribuiu 181 milhões de euros em dividendos aos acionistas referentes a 2020 e 493 milhões de euros referentes a 2021. Já a Sonae MC (dona do Continente e do Meu Super) alcançou um lucro de 547 milhões de euros em 2021. Os grupos Auchan, Mercadona e Lidl apresentaram também lucros consideráveis durante a pandemia.

Apesar deste tsunami de lucros, o Estado sentiu-se na obrigação de ajudar estes grupos, compensando-os pelo encargo acrescido resultante do aumento do salário mínimo nacional. Foi assim que os grupos Jerónimo Martins e Sonae estiveram entre as dez empresas que mais embolsaram com estas ajudas. Apesar desta solidariedade do Estado português, os patrões da grande distribuição continuam a preferir entregar os seus impostos a outro Estado. No caso dos grupos Jerónimo Martins e Sonae (como de quase todas as maiores empresas cotadas em Bolsa), estes continuam a ter as suas sedes fiscais nos Países Baixos, beneficiando de uma menor carga fiscal e lesando os cofres públicos portugueses.

O que rende é o abuso

No final de março, pela quinta vez, num total de dez processos em investigação, a Autoridade da Concorrência (AdC) multou o setor da grande distribuição pela prática de fixação de preços. Em causa está uma coima de 80 milhões de euros aplicada às empresas Sumol+Compal, Auchan, Lidl, Modelo Continente e Pingo Doce. Segundo a AdC, “a investigação determinou que durante cerca de 14 anos e meio – entre 2002 e 2017 -, os distribuidores e o fornecedor concertaram os preços de vários produtos da Sumol+Compal. Através do recurso ao fornecedor comum, as empresas participantes asseguravam o alinhamento dos seus preços de venda ao público, assim restringindo a concorrência pelo preço entre supermercados e privando os consumidores de preços diferenciados”, o que a AdC classifica como “uma conspiração equivalente a um cartel”.

Vale a pena analisar como se estabelece esta prática. Consultemos, a título de exemplo, o processo que resultou, em 2020, na condenação em 304 milhões de euros de coimas aplicadas a seis hipermercados (entre os quais o Pingo Doce, Auchan e Lidl) e dois fornecedores. Como se pode ler na troca de comunicações, os fornecedores articularam diretamente com os hipermercados a fixação de preços de algumas bebidas, impedindo que os preços baixassem por via de promoções ou da decisão isolada de cada distribuidor. As mesmas comunicações demonstram a preocupação em não deixar rastos, solicitando a eliminação das comunicações escritas.

Comunicação - exemplo 1

Comunicação - exemplo 2

Comunicação - exemplo 3

Segundo a AdC, esta “prática de fixação indireta de preços de venda ao consumidor de vários produtos durou entre 2007 e 2017 e tinha em vista a subida, gradual e progressiva, dos preços no mercado retalhista. Através do recurso a um fornecedor comum as empresas participantes asseguravam o alinhamento dos seus preços de venda ao público.” Em muitos destes casos, a promoção apresentada no folheto semanal parte já de um preço concertado e inflacionado no passado. O folheto promete o desconto, mas o cartel sobe o preço.

Inflação para todos, lucros para alguns?

Não existe uma resposta de via única para travar a pressão inflacionária, mas combater o parasitismo cartelizado dos grandes grupos de distribuição é, sem dúvida, um passo necessário para proteger os rendimentos mais baixos. As evidências de que a concentração da produção e distribuição em poucas mãos contribuem para o aumento dos preços são apontadas por muitos economistas nos EUA e na Europa.

Robert Reich, antigo secretário do Trabalho do governo Clinton, realça que “o problema subjacente não é a inflação. É o poder corporativo. Desde a década de 1980, quando o governo dos EUA praticamente abandonou a fiscalização antitrust, dois terços de todas as indústrias americanas tornaram-se mais concentradas. A maioria agora é dominada por um punhado de corporações que coordenam preços e produção. As corporações em todos esses setores poderiam facilmente absorver custos mais altos – incluindo aumentos salariais há muito atrasados – sem transferi-los para os consumidores na forma de preços mais altos. Mas eles não o fazem. Em vez disso, usam os seus enormes lucros para encher os bolsos de grandes investidores e executivos – enquanto consumidores e trabalhadores são enganados”.

Juan Torres López, professor catedrático de Economia na Universidade de Sevilha, aponta os erros de uma abordagem meramente monetária no combate à inflação. Segundo este economista, a resposta não está apenas na política dos bancos centrais, mas antes numa combinação de instrumentos que ataque as múltiplas causas do aumento da inflação, enfrentando, também, “a falta de regulação que beneficia os oligopólios (no sector financeiro, de distribuição comercial ou das energias) que permite que muitas empresas aumentem as suas margens e subam os preços desnecessariamente”.

Isabella Weber, professora da Universidade de Massachusetts Amherst sobe o tom do alerta e refere a “explosão dos lucros” como uma das principais causas da pressão inflacionária. Traçando um paralelo com o período do pós-guerra, Isabella Weber argumenta que, num cenário de aumento da procura (após as restrições da pandemia) e de quebras nas cadeias de fornecimento, uma política de controlo de preços por parte dos governos permitiria “ganhar tempo para lidar com os estrangulamentos que continuarão a existir enquanto durar a pandemia. O controlo estratégico dos preços pode também contribuir para a estabilidade monetária necessária para mobilizar investimentos públicos direcionados à resiliência económica, mitigação das alterações climáticas e neutralidade carbónica”.

Em Portugal, o governo tarda em responder com eficácia e justiça social ao aumento generalizado dos preços. A escalada da conta do supermercado e dos combustíveis afetará os orçamentos familiares, mas a subida da inflação terá também impacto em despesas que não dependem do fornecimento ou consumo de bens, como é o caso das rendas, que poderão sofrer aumentos legais superiores a 4% já em 2023 (o que equivale a 30 e 40 euros em rendas já sobrevalorizadas).

Cada dia que passa sem essa resposta é um dia em que a maioria da população perde poder de compra e em que, num cenário de crise e sob os efeitos da guerra, uns poucos consolidam os lucros extraordinários.

Sobre o/a autor(a)

Sociólogo, dirigente do Bloco de Esquerda e ativista contra a precariedade.
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