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Hetero q.b?

“Hetero q.b” não é originalmente uma pergunta, mas sim o nome de uma exposição declaradamente política e feminista, uma exposição aparentemente impossível num museu em Lisboa.

Emília Tavares e Paula Roush criaram, no Museu do Chiado, um espaço para receber uma arte queer que é invisível em Portugal, embora emergente neste encontro inusitado de práticas institucionais discriminatórias e obsoletas com perspetivas internacionais libertadoras.

Apesar de um ministro Vítor Gaspar disposto a fechar o país e uma Secretaria de Estado da Cultura condenada ao suicídio, apesar de um imenso deserto austero que torna as vidas autómatas e vazias, encontro nesta exposição um exemplo de um oásis de pensamento crítico e uma derradeira interrupção da normalidade na arte e, consequentemente, nas nossas vidas. Afinal, neste país pequenino governado por pessoas com espíritos minúsculos, ainda surgem grandes feitos por quem não desiste de estar acordado e consciente.

Na apresentação da exposição de vídeo-arte performativa que começou em Abril e dura até Junho, as curadoras explicam que chamaram ao projeto “hetero q.b” com base na premissa de que “as sexualidades são uma componente essencial da prática artística e nas relações de poder que se estabelecem entre artistas e instituições”. O objetivo primeiro, portanto, é desafiar esse filtro ainda constante e normativo da heterossexualidade, tão presente na vida como na arte. Este objetivo transforma-se depois num pretexto para colocar questões essenciais sobre o género, entre construção e desconstrução, alargando o horizonte feminista de questionamento do corpo, da autoridade, da história, da sexualidade, da intimidade, do exótico, da família e do ativismo político. Aqui, a teoria queer é sem dúvida um ponto de partida e não chegada.

Vale a pena visitar este programa que apresenta uma extensa seleção de obras criadas por mulheres do sul e leste da Europa, África, Ásia, Médio Oriente e América do Sul. São artistas de países com diversas realidades políticas, de diferentes religiões, culturas e classes sociais, cujas obras redefinem o próprio feminismo e a diversidade de género, muitas vezes rompendo com a hegemonia euro-americana em termos de pensamento e de práticas.

Nos três meses de duração da exposição, em cada semana é abordado um tema. Embora já tenham passado 5 semanas e cinco temas, ainda há muito para ver e pensar até 30 de Junho. Nesta semana de 14 a 19 de Maio, o tema é “ O sexo da História”. Pude ir ver o documentário que abriu a exposição, Difficult Love (2010), sobre a fotógrafa e ativista Zanele Muholi. Não conhecia o seu trabalho. O seu valor estético e político é inquestionável. Falhando uma semana ou outra, tenho ido ver e conhecer estas mulheres e a sua arte. E o mundo ficou maior.

Para quem possa estar já a ranger os dentes com a acusação do elitismo e a arte é só para algumas carteiras, termino com uma informação valiosa, sobre a qual Vítor Gaspar deve permanecer ignorante: aos domingos, a entrada neste museu é gratuita. Até Junho, os domingos implicam um passeio pelo Chiado e também uma predisposição para perguntarmos à sociedade e a nós próprios – hetero q.b?

Sobre o/a autor(a)

Investigadora e doutoranda em Filosofia Política (CFUL), ativista, feminista. Escreve com a grafia anterior ao acordo ortográfico de 1990
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