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Há 100 anos a recusar vacinas
Portugal tem um plano de vacinação desde 1899, mas este só foi regulamentado em 1911 pela República. Na sua tese sobre “Os Levantes da República (1910-1917), Resistências à laicização e movimentos populares de repertório tradicional na 1ª República”, o historiador David Luna de Carvalho relata algumas revoltas contra esse plano: “Na primavera de 1911, por todo o concelho de Gouveia se espalharam boatos de que, a expensas da Maçonaria, as crianças das escolas iriam ser vacinadas para, por este meio, se lhes tirar a crença religiosa”; o jornal “A Democracia da Beira” dava conta da existência do boato de “os professores tirarem o sangue dos seus alunos — debaixo da cova do braço — para com ele escreverem os seus nomes no livro da Maçonaria!...”; “Centenas de habitantes […], homens e mulheres, [foram] a caminho das duas escolas munidos de sachos, enxadas, machadas e até revólveres, intimando o professor e professora, com caráter agressivo, a porem no olho da rua os seus filhos, que os não queriam vacinados com o sangue dos maçónicos”. Percebe-se que parte da resistência à vacinação estava diretamente relacionada com o processo de implantação territorial da República e da ordem do Estado laico, manipulando esse medo, afinal uma reação natural perante o desconhecido. Assim, as vacinas foram desde o primeiro dia uma questão de saúde pública e, portanto, de ordem democrática. Ainda são.
Cem anos depois
A Organização Mundial da Saúde já tinha listado, em 2019, a resistência à vacinação como uma das 10 maiores ameaças à saúde global, e recentemente a revista “Nature” detalhou o argumentário do movimento antivacinas, alertando para o efeito pernicioso da proliferação destes discursos, sem qualquer evidência científica. Um dos espantosos argumentos é de que a vacina servirá para instalar microchips nas pessoas. Parece um argumento novo, mas, na verdade, é apenas uma versão tardia da inoculação de sangue maçónico. Ora, para o combate à covid-19 a escolha pública é decisiva.
O objetivo subterrâneo deste surfar da extrema-direita pelas teorias da conspiração — como o terraplanismo — é desacreditar a ciência e colocar as conspirações no mesmo nível de atenção pública
Olavo de Carvalho, guru de Bolsonaro, um dos instigadores destas teorias, produz aforismos contra as teorias científicas: “Newton não espalhou só o ateísmo pela cultura ocidental: espalhou o vírus de uma burrice formidável” (“Jornal do Brasil”, 2006); “Não sei se a evolução biológica aconteceu ou não. Ninguém sabe. O que sei, com absoluta certeza, é que, como construção intelectual, o evolucionismo é um dos produtos mais toscos e confusos que já emergiram de uma cabeça humana — ou animal” (“Diário do Comércio”, 2009). Parece conversa de tonto, mas tem agenda política. Recordemos que foi por sua sugestão que Ricardo Vélez Rodríguez chegou a ministro da Educação de Bolsonaro e com ele se impôs a agenda de contestação do currículo escolar, por exemplo, equiparando o terraplanismo e o criacionismo a teorias científicas.
Nessa onda, Olavo de Carvalho tuitava em 2016 que as “vacinas matam ou endoidam”, recomendando aos seus discípulos: “Nunca dê uma a um filho seu. Se houver algum problema, venha aqui que eu resolvo.” Admitindo que alguns dos seus filhos foram vacinados, concluía que “todos foram abençoados com saúde, força e vigor extraordinários e nenhum deles deve isso aos méritos da ciência, mas a Deus e ninguém mais”. Lembra-se de 1911?
O nosso Olavo e o seu pupilo
O Olavo de Carvalho de André Ventura chama-se João Tilly e também ele faz campanha contra a vacinação. Diz, no seu blogue, “NUNCA na minha vida — mas NUNCA MESMO — eu me vacinaria a mim ou vacinaria um filho meu, se voltasse a ter mais algum”. Ou “a medicina em Portugal, nomeadamente no SNS, é uma treta pegada, pouco mais do que uma curandice” e “estamos a infetar as crianças com doenças em estado letárgico, que, por um lado, têm provocado a própria doença em milhares e milhares de casos — com centenas de mortes — e, por outro, parecem ser responsáveis pelo boom da diabetes a nível mundial”. Este engenheiro mecânico alega que “parece” que as vacinas criam diabetes, não cuida de qualquer estudo credível, basta-lhe a desinformação.
Quando condena o “lobby farmacêutico” das vacinas, Tilly oculta a única conspiração até ao momento provada: em 1998, o médico britânico Andrew Wakefield publicou um artigo na conceituada revista “The Lancet” no qual estabelecia um vínculo causal entre a vacina VASPR (sarampo, papeira, rubéola) e o autismo. Só que em 2004 uma investigação jornalística desmascarou Wakefield, revelando que tinha falsificado os dados clínicos. Em 2010, a própria “Lancet” pediu desculpa pela publicação do artigo e retirou-o dos arquivos. No mesmo ano, Wakefield perdeu a licença para exercer medicina. O facto é que todos os estudos desmentem estes argumentos do movimento antivacinas, mas o dano causado pelo pânico é grave, com a diminuição das taxas de vacinação (a França tem uma taxa de imunização ao sarampo entre crianças entre um e dois anos menor que a do Burkina Faso) e o reaparecimento de doenças que se criam erradicadas.
Entretanto, já se sabe que por cá a extrema-direita tem pouca consistência política, funcionando ao sabor da conveniência. O vento que enfunava o conspiracionismo antivacinas perdeu força com o drama da covid-19, e mesmo André Ventura vem agora assegurar que até vacinou a coelha de estimação. Ainda assim, Tilly, persistente, continua a afirmar, tal Bolsonaro, que “o vírus é uma coisa ligeira, é menos que uma constipação, é menos que uma gripe”. Se houver vacina para a covid-19, veremos se a fanfarronice do guru prevalece.
O objetivo subterrâneo deste surfar da extrema-direita pelas teorias da conspiração — como o terraplanismo — é desacreditar a ciência e colocar as conspirações no mesmo nível de atenção pública, fazendo-as passar por credíveis. E dessa sanha faz parte o discurso antivacinas, mais uma entoação da sociedade do medo.
Artigo publicado no jornal “Expresso” a 23 de maio de 2020
Comentários
Curioso, sendo o Bloco por
Curioso, sendo o Bloco por norma o meu partido, não posso deixar passar em claro a contradição entre este belíssimo texto do Xico e a parvoíce monumental que o Bloco fez ao votar favoravelmente os charlatães da "medicinas alternativas", algo que não existe, porque se tem efeito medicinal é medicina e não é alternstiva. O que é que se passou entretanto? Aprenderam alguma coisa com a actual pandemia e mudaram de opinião, ou a opinião é apenas do Louçã e não reflecte a posição oficial do Bloco? Pessoal, mais ciência e mais atenção, o vosso (nosso) voto nesta matéria serviu para legitimar charlatães. Assim não. E o exemplo vindo de fora não serve de argumento. Quando é falso não pode servir de modelo. Saudações cordiais.
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