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Grito de Indignação?

A democratização da democracia é a chave essencial, a soberania popular não se pode esgotar no voto.

A relação entre os movimentos sociais e os partidos são um velho e polémico debate. O movimento operário filho da revolução industrial cedo se apercebeu da necessidade de organização. As primeiras internacionais operárias testemunharam ativamente a vivacidade da polémica entre comunistas e anarquistas. Vencendo a necessidade de organização para lá dos sindicatos o partido de classe sobre a alternativa do povo unido não precisa de partido. A forma como esta máxima evoluiu e degenerou nos países ditos socialistas é um outro debate do qual ganha a esquerda que com ela aprendeu, evoluiu e arquivou as correias de transmissão.

Se podemos entender como caricatural a classe operária não se poder exprimir em toda a sua vertente, por o partido estar no poder, logo os seus interesses regerem a orientação do estado – como no passado fez Bertold Brecht, ele próprio cidadão para lá do outro lado do muro1- não devemos desleixar o debate como a esquerda se relaciona com os fenómenos de massas e as organizações mais ou menos espontâneas ou mais estabelecidas e enraizadas. Principalmente numa altura em que a crise económica e social arrasta consigo a crise das instituições, parece que a muitos convém que o estereótipo anti-partidos arrastem todos para o mesmo saco. Mas quem ganha com isso?

A popularização da premissa da igualdade nas responsabilidades, práticas e tiques, tem-se vulgarizado na vox populi.Se uns são os responsáveis pela crise, os outros estão acomodados nas torres de marfim da Rua de São Bento. São todos ladrões conclui-se. Em jeito de anedota podia ser motivo para sindicalizar os integrantes da Assembleia da República. Mas o que pode ter piada, pode na verdade ser trágico e pré-presságio da dominação do pós-político no padrão de valores da sociedade portuguesa, ou se quisermos em diversos Estados-Nação do Ocidente. E como em tudo na vida, há sempre quem tenha uma prancha para apanhar a onda. A Comissão Europeia e restante tecnocracia tem-na e aplaude, em alturas de crise, dá sempre jeito, ou como dizia Salazar? Eu não sou político, sou estadista. É óbvio que incomoda a qualquer elite económica, que os seus representantes tenham que enfrentar esporadicamente um escrutínio, se deixarem abalar pelos protestos, ou que sejam obrigados a se submeterem a referendos. A solução recente é simples e antiga, se um governo obediente liberal e conservador não chega, substituem-se os políticos de direita por tecnocratas, de preferência com ligações à banca. Adeus Berlosconi e Papandreou, olá Monti e Papademos. Afinal estes não fazem parte do clube do “todos iguais”, nem políticos são, muito menos foram eleitos. E aí está, o resultado do legado do pós-político, que nesta vertente é sempre pós-democrática. É normal que depois adiar eleições – como se propõe na Grécia – faça parte do pró-forma da culinária tecnocrática.

Retomando, o alicerce social de toda a desconfiança é fruto do troikistãoparlamentar de programa único. O aproveitamento para o alargar a outras forças para lá da muralha, seja pela colagem da mesma etiqueta, ou do desnudar da propriedade de alternativa sistémica é parte da estratégia de dominação e de perpetuação da dominação hegemónica. O fim desta amarra é uma demanda para a renovação da democracia. Por outro lado, cabe à esquerda compreender não só a raiz do problema e construir o diálogo com a indignação que tem nascido pelas praças. A democratização da democracia é a chave essencial, a soberania popular não se pode esgotar no voto. É pena que o eco social sobre, a proposta do Bloco de reduzir de 35000 para 4000 as assinaturas necessárias para uma iniciativa legislativa cidadã, tenha sido mudo. Acrescente-se que nunca é demais referir os chumbos sucessivos de referendo a tratados europeus que o BE tem proposto. O mesmo acontecerá com a proposta de referendo do tratado orçamental. A democracia é uma arma contra o despotismo anti-social, é normal que oshabituésdo jogo das cadeiras se sintam incomodados e não lhe prestem mais que o veto, o povo poderá sempre enganar-se no sentido de voto.

Do ninguém me representa às abstenções violentas, podemos somar bons slogans. A democracia e o progresso social é que ficam pelo caminho.


1
Após a insurreição de 17 de Junho
O secretário da União dos Escritores
Fez distribuir panfletos na Alameda Estaline
Em que se lia que, por culpa sua,
O povo perdeu a confiança do governo
E só à custa de esforços redobrados
Poderá recuperá-la. Mas não seria
Mais simples para o governo
Dissolver o povo
E eleger outro?
Bertolt Brecht, Poemas, Editorial Presença, 1976, p.82

Sobre o/a autor(a)

Dirigente do Bloco de Esquerda. Sociólogo.
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