Para um governo de esquerda, havia três obstáculos.
O primeiro obstáculo morreu a semana passada, quando o Bloco convidou o PS e o PCP para um diálogo sem condições para criar a plataforma de um governo de esquerda. Apesar de a direção de A. J. Seguro, num ato de pequenez irrevogável, ter enxotado mal-educadamente a hipótese de conversação e reafirmado o seu empenho no malogrado acordo com a direita, esta iniciativa foi percebida por quem reconhece os gestos que começam a mudar tudo.
Bem sei que o esforço para um governo que reestruture a dívida, proteja os salários e mobilize recursos para criar empregos é difícil e enorme, porque enfrenta a renda financeira que agrilhoa Portugal. Mas a vida é assim: agora são os juros ou as pensões. Amanhã será pior.
Para um governo de esquerda, se ficamos a saber que não se conta com Seguro, perdido no frenesim dos seus compromissos de subjugação à troika ou de uma austeridade "inteligente", sabemos também que contamos com quem no Bloco, no PCP, no PS e em tanto sectores independentes se empenha na política que termine a austeridade e a troika. Saber é um passo, mesmo que seja só o primeiro passo.
Os outros dois obstáculos subsistem e devem ser enfrentados.
O segundo é a falta de alternativas concretas. Para quem faz política como uma maré que vai e vem e morre sempre na praia, limitar-se ao protesto é uma forma de vida. É o caso do PS hoje: ao recusar a reestruturação da dívida e ao comprometer-se com a continuação da austeridade - "os nossos compromissos externos" - o PS aceita as dificuldades impostas às pessoas.
Seguro fica assim prometido. Sabe e mostra que sabe que, quando houver eleições, o seu programa não será a proclamação congressual dos últimos dias, mas será o compromisso que assinará com a troika para continuar a austeridade que, numa vertigem, exige sempre mais impostos, menos salários e menos serviços públicos. No centro só há austeridade e a troika é um aliado cruel.
Pelo seu lado, a esquerda precisa de trabalhar mais, com um fôlego enérgico para constituir plataformas concretas para a renegociação que abata a dívida, para o controlo público do crédito e um programa de investimento, ou para salvar o SNS e a segurança social. Um governo de esquerda, o que resulte de um acordo pós-eleitoral de diferentes partidos e que agregue forças sociais alargadas, precisa do caminho desse programa. Há poucos meses para o fazer.
O terceiro obstáculo é o bloqueamento presidencial. Temos o Presidente mais fraco da era constitucional da República pós-ditadura, e também o que nada faz que não seja por conveniência pessoal, num labirinto de pequenas vinganças e ajustes de contas que se tornam obsessivos. Fora do seu tempo, habituado a quando governava sentado na maioria absoluta e num único canal de televisão, sem contraditório parlamentar nem debate público, Cavaco Silva tornou-se o embaixador do BCE e da desacreditada Comissão Barroso.
No fim desta crise, o Presidente queda-se paralisado pela sua própria ação. Já não tem alternativa que não seja esperar pelo fim do seu tempo. Nenhum Presidente se tinha encerrado nesta prisão. Veremos o que determina a vontade de quem preferiu não fazer nada e, quando escolheu mexer-se, deixou tudo na mesma. Não sei se, no seu pântano, o Presidente quererá terminar o seu mandato.
Mas sei que a esquerda deve abrir a discussão presidencial para ter uma solução forte. Um Presidente que mobilize a democracia para enfrentar o seu pior inimigo, a finança rentista que corrompeu a economia e provocou uma engenharia social destruidora do emprego e da vida.
Por isso, respondo ao repto do ex-presidente Jorge Sampaio: sim, Portugal precisa de ter mais capacidade negocial na Europa. Para isso, acrescento, precisa de ter um programa de redução da dívida e de o impor na Europa. Esse programa precisa de um governo e de um presidente sintonizados. A esquerda precisa de uma maioria e de um presidente para retirar o poder da obscuridade da finança e entregá-lo à responsabilidade da democracia.
Artigo publicado no jornal “Diário de Notícias” a 26 de julho de 2013