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A “golpaça constitucional” pela mão dos “videirinhos”

Num momento em que alguns falam em golpe de Estado, fundando-se numa ideia errada de eleição directa do Primeiro-Ministro, tudo isto mais me parece uma “golpaça constitucional”, cujo objectivo é anular a vontade maioritária dos portugueses e o papel e relevo da AR.

A Assembleia da República, com o voto de todas as forças políticas não representadas no Governo, aprovou, sem surpresa, uma mais que anunciada Moção de Rejeição do Programa do XX Governo Constitucional.

Seria expectável que o Presidente da República, no cumprimento das suas competências constitucionais levasse a cabo nova audição dos partidos políticos para a designação de um novo Primeiro-Ministro. Tanto mais, que previamente à aprovação da Moção de Rejeição, entre o PS e o Bloco de Esquerda, entre o PS e o PCP e entre o PS e o PEV foram celebrados acordos políticos que viabilizam a constituição de um novo Governo, da responsabilidade do PS, com garantia de estabilidade.

Ora, não se compreende que alguém tão cioso da necessidade de cumprimento das obrigações de Portugal decorrentes da participação na União Europeia e na União Económica e Monetária tenha uma conduta passível de retardar de forma grave e injustificada o seu cumprimento.

É bom não olvidar que Portugal tem sido advertido pela Comissão Europeia para a necessidade de apresentar junto das instituições europeias um projecto de Orçamento de Estado. E tal, neste momento, apenas pode ser feito por um novo Governo, pois este Governo não dispõe de iniciativa legislativa junto da Assembleia da República.

Em vez das audições constitucionalmente obrigatórias, o Presidente da República vem desenvolvendo contactos com os parceiros sociais sobre o actual momento político, o que tem gerado a apreciação dos diversos aspectos dos acordos celebrados entre o PS e os restantes partidos de esquerda à margem da Assembleia da República. O Presidente da República parece procurar desta forma ressuscitar informalmente a Câmara Corporativa da Constituição de 1933!

Que fique claro que é no quadro parlamentar que o Presidente da República tem de encontrar a solução para a formação de um novo Governo, e não num quadro de concertação social ou neo-corporativismo!

Todas estas audiências têm como efeito travar a discussão do Programa de Governo de um Governo ainda não empossado fora do momento e do quadro institucional constitucionalmente consagrado.

Ao que parece, o Presidente da República irá no início da próxima semana em visita oficial à Região Autónoma da Madeira, protelando a audição dos partidos políticos com assento constitucional e assim adiando o cumprimento das suas competências e obrigações constitucionais.

Entretanto, o XX Governo Constitucional, que se encontra limitado no exercício das suas competências por força do artigo 186.º, n.º5 da Constituição da República Portuguesa, que dispõe que: “Antes da apreciação do seu programa pela Assembleia da República, ou após a sua demissão, o Governo limitar-se-á à prática dos actos estritamente necessários para assegurar a gestão dos negócios públicos”.

Esta limitação é bastante fluída, tendo gerado algumas querelas doutrinárias quanto à extensão das competências do Governo nestas circunstâncias. No entanto, resulta claro para qualquer cidadão que o Governo está muito limitado no exercício das suas competências.

Por outro lado, e considerando que o Governo depende da confiança política da Assembleia da República, não teria sentido que pudesse nesta circunstância pôr em prática actos contraditórios com os fundamentos da sua demissão (neste sentido, veja-se Diogo Freitas do Amaral, “Governos de Gestão”, 2.ª Edição, Princípia, Cascais 2002, pág. 34).

O XX Governo Constitucional, por deliberação do Conselho de Ministros de 12 de Novembro de 2015, veio a aprovar a assinatura do contrato que ditará a privatização da TAP. Todos bem sabemos, até da leitura dos diversos acordos celebrados entre o PS e os diversos partidos de esquerda, que a manutenção da TAP na esfera pública foi um dos pontos consensuais que ditou a aprovação da Moção de Rejeição ao Programa de Governo.

Provavelmente, neste vazio ditado pela sua demissão, pela fluidez da interpretação das suas competências e pela demora do Presidente da República, o XX Governo Constitucional prepara-se para tomar outras medidas cuja rejeição pela maioria parlamentar ditou a sua queda, como sejam a subconcessão da Carris, do Metro, da STCP e do Metro do Porto.

Como refere Diogo Freitas do Amaral, “Quem é titular de um direito ou de uma competência sujeitos a condição ou a termo está necessariamente limitado na sua capacidade decisória, porque a sua situação é precária – e deve proceder de boa fé para com aqueles que, se a situação evoluir o substituirão na sua posição actual.” (in “Governos de Gestão”, 2.ª Edição, Princípia, Cascais 2002, pp. 44 e 45).

Bem vemos que o XX Governo Constitucional, como assinala a situação da TAP não está a proceder de boa fé, contando para este comportamento com o amparo da inércia do Presidente da República.

Finalmente, Passos Coelho defendeu em 12 de Novembro de 2015 a alteração das regras constitucionais para permitir a realização de eleições legislativas no imediato. Se estas limitações constitucionais existem, há uma boa razão para o efeito: o equilíbrio de poderes entre o Presidente da República e a Assembleia da República, evitando tentações Cesaristas, ou à nossa moda, Sidonistas.

Se Passos Coelho quer propor a alteração da Constituição da República Portuguesa, proponha antes que a mesma incida sobre os poderes dos Governos de Gestão, clarificando e limitando as suas competências, que devem ser emuladas ao Princípio Democrático e ao Princípio da Maioria.

Num momento em que alguns falam em golpe de Estado, fundando-se numa ideia errada de eleição directa do Primeiro-Ministro, tudo isto mais me parece uma “golpaça constitucional”, cujo objectivo é anular a vontade maioritária dos portugueses e o papel e relevo da Assembleia da República. Há pois que denunciar a golpaça constitucional e o comportamento de alguns “videirinhos” que a conduzem.

Sobre o/a autor(a)

Advogado, ex-vereador a deputado municipal em S. Pedro do Sul, mandatário da candidatura e candidato do Bloco de Esquerda à Assembleia Municipal de Lisboa nas autárquicas 2017. Escreve com a grafia anterior ao acordo ortográfico de 1990
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