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Galp: um caso de areia para os olhos

Se temos de um lado a criatividade que procura criar valor social e ambiental, temos do outro uma criatividade que serve os fins capitalistas de uma organização bem assente na obtenção de lucro.

No passado mês de Julho, a Galp lançou a sua nova campanha “Pensar Fora do Carro” com o objetivo de afirmar junto dos consumidores o seu posicionamento “além dos combustíveis”, recordando a sua ampla oferta de serviços, como gás e eletricidade.

Este trabalho, da agência O Escritório, procura corporizar “a transformação de uma Galp cada vez mais integrada, digital, sustentável e a liderar o caminho da transição energética” (Galp, 2022).

O spot televisivo assume aquilo que a Galp caracteriza como “tom humorístico e irreverente”, onde destaco o excerto “[as famílias portuguesas] talvez nem imaginem que a Galp (...) está tão atenta à emergência climática como às emergências lá de casa. Ah, e quem disser que isto é só uma limpeza de imagem pode sempre ir dar banho ao cão (...)”.

Realmente parece humor dizer que se preocupam com as famílias portuguesas e com as emergências lá de casa enquanto mostram uma família de classe média alta branca satisfeita a fazer compras numa estação de serviço, como se qualquer um pudesse manter-se com os preços prestados por essas luxuosas mercearias.

Também encontro algum humor na “preocupação” climática, considerando que, só em Portugal, a petrolífera é detentora da refinaria de Sines que tem liderado a lista de maiores poluidores portugueses

Também encontro algum humor na “preocupação” climática, considerando que, só em Portugal, a petrolífera é detentora da refinaria de Sines que tem liderado a lista de maiores poluidores portugueses - uma denúncia feita pelo Inventário das Emissões de Portugal (2021) da Climáximo e Greve Climática Estudantil, através de dados compilados de organizações como Agência Portuguesa do Ambiente e Registo Europeu de Comércio de Emissões da União Europeia. Este educado mandar alguém “dar banho ao cão”, parece ser precisamente direcionado aos movimentos sociais, que entre as acções mais recentes contam manifestações junto à refinaria e a ação internacional de ad-hack a 1 de abril de 20211.

 

Em Sines, os ativistas exigem um encerramento gradual, transitando para energias renováveis até 2025, sem prejuízo para os seus trabalhadores. A Galp afirma ter uma intenção semelhante. Pretende tornar a refinaria de Sines num “centro de energia verde”, indo de encontro à sua missão proclamada de “[trabalhar] todos os dias no caminho da transição energética rumo a um futuro mais sustentável”. Contudo, como assinalado por Sinan Eden (2022), o interesse aqui não é a transição mas a expansão energética2. Afinal, esta “transição” energética parece falhar em (i) não estar associada aos planos de instalação da capacidade solar, (ii) não compreender garantia de emprego para os trabalhadores nos seus projetos, (iii) e, aquando o uso do hidrogénio verde, não priorizar áreas onde este pode ter um papel ativo na descarbonização da economia (ibid.).

 

À falta de informação e transparência encontram-se outras estratégias. A que mais me chamou à atenção foi este exemplo na revista Sábado em Novembro de 2021: a meio de um artigo de duas páginas sobre a ação de desobediência civil ativista na refinaria de Sines consta uma página da rubrica “C•Studio” preenchida pela Galp.

Revista Sábado, nº 917, 25 de novembro de 2021 (pp. 88/89)

Revista Sábado, nº 917, 25 de novembro de 2021 (pp. 88/89)

Essa rubrica aparece descrita no site como “a marca que representa a área de Conteúdos Patrocinados do universo Cofina. Aqui as marcas podem contar as suas histórias e experiências.” - portanto, uma história contada pela Galp, não depois, mas precisamente entre as duas páginas que narram uma atividade da oposição. Não se pode sequer considerar um uso inteligente de marketing mas uma simples compra feita por quem tem mais do que recursos para comprar. Uma tática vazia de resconstrução de imagem que William Benoit (1997)3 caracterizou como um ato de reforço para reduzir a ofensa de uma determinada atividade.

Revista Sábado, nº 917, 25 de novembro de 2021 (pp. 90)

Revista Sábado, nº 917, 25 de novembro de 2021 (pp. 90)

Já o spot televisivo limita-se a minimizar o problema - a clássica tática de “chutar para canto”. Este “artigo” de revista bem como o anúncio recente em nada assumem uma postura corretiva ou um comportamento de retificação. Note-se que em paralelo a esta silenciosa ação na revista Sábado a administração da petrolífera comentou para a agência Lusa: “Respeitamos o direito ao protesto e entendemos a posição dos manifestantes, que acreditam que mais acções são necessárias no movimento da descarbonização”. Uma estratégia portanto que reage em vez de se mostrar pró-activa, marcada pela resistência e nunca pela capitulação.

 

Numa observação semelhante à de Oli Mould no seu livro “Against Creativity" (2018), sobre a usurpação da criatividade para fins neoliberais, temos de um lado a criatividade que procura criar valor social e ambiental, sensibilizar e trazer para a agenda a questão ambiental e os danos industriais da Galp e temos, do outro lado, uma criatividade que procura criar valor de marca, a chamada brand equity, para servir os fins capitalistas de uma organização bem assente na obtenção de lucro.

Se normalmente se atenta aos efeitos da publicidade na sociedade ou a um nível mais individual (consumidor, o publicitário ou aquela campanha individual) - aquilo que Drumwright (2007)4 caracteriza como uma perspectiva ‘macro’ e ‘micro’, respectivamente - é preciso aqui considerar uma responsabilidade a nível organizacional. Uma perspectiva ‘meso’ (ibid.) onde se considere o papel do cliente (a Galp), mas também quem distribui (o media) - a revista Sábado, por exemplo, a quem deve também ser atribuída responsabilidade - e quem produz (a agência) - o elemento da tríade a quem normalmente se perdoa a falta de reflexividade crítica.

a Galp mantém-se um perfeito exemplo de empresa onde os seus valores e missão perpetuam uma orientação para shareholders

Em 2007, Drumwright escreveu: “(...) o facto de que a sociedade permite às corporações existir implica um contrato social que impõe obrigações às empresas de considerar os interesses da sociedade nas suas ações” (p.402)4. Contudo, a Galp mantém-se um perfeito exemplo de empresa onde os seus valores e missão perpetuam uma orientação para shareholders, prevalente na literatura de gestão, administração de negócios e contabilidade5, em vez de uma orientação para stakeholders. Entendendo stakeholders como todos aqueles afetados pela atividade de uma organização6, a comunicação com movimentos ativistas parece não ser uma prioridade. 

Se a “responsabilidade ética [ethical accounting] mede quão bem uma organização está à altura dos valores dos seus stakeholders” (Pruzan, 2001, p.280)7, então pode dizer-se a Galp falha em ser ética. E se a responsabilização (accountability) falha não se pode operacionalizar os conceitos de responsabilidade corporativa (ibid.) e valores que a petrolífera parece auto-prezar.

Resta esperar que ao consumidor empoderado do séc. XXI lhe faça comichão a areia nos olhos, condenando esta tentativa da Galp de se mostrar, tal como os cidadãos, tão preocupada com as emergências climáticas

Resta esperar que ao consumidor empoderado do séc. XXI lhe faça comichão a areia nos olhos, condenando esta tentativa da Galp de se mostrar, tal como os cidadãos, tão preocupada com as emergências climáticas. Sobre as possíveis consequências Alexander et al. (2011)8 explicam-nos que “(...) alguns apelos a valores intrínsecos, especialmente onde estes são usados oportunisticamente de forma evidente, podem, na verdade, servir para minar a crença de uma pessoa na integridade com que outros expressam esses valores, diminuindo por isso a importância que atribuem a esses valores quando os encontram noutro lugar” (p.34).

Entretanto, aguarda-se por mais exemplos - afinal, uma vez revelados os escrúpulos de marketing desta organização, mais poderá ser esperado. Afinal, ética no que toca à produção de lucro já se sabe não ser o forte de uma petrolífera.

Notas:

1 Ação em Lisboa, onde foi distribuída publicidade falsa da Galp com os headlines “O nosso futuro é CO2lonialismo” e “mais lucro, menos pessoas”.

2 Eden, S. (9 abril, 2022). Sines: O hidrogénio vai salvar tudo?. Empregos para o clima. https://www.empregos-clima.pt/sines-o-hidrogenio-vai-salvar-tudo-sinan-eden/

3 Benoit, W. L., (1997) Image Repair, Discourse and Crisis Communication, Public Relations Review, 23:2, 177-186, ISSN 0363-8111

4 Drumwright, M. E. (2007). Advertising Ethics: A Multi-level Theory Approach. In G. J. Tellis & T. Ambler (eds.), The SAGE Handbook of Advertising, pp.398-415. SAGE

5 Benoit, W. L., (1997) Image Repair, Discourse and Crisis Communication, Public Relations Review, 23:2, 177-186, ISSN 0363-8111

6 Pruzan, P. (2001). The Question of Organizational Consciousness: Can Organizations Have Values, Virtues and Visions? Journal of Business Ethics, 29: 271–284. Kluwer Academic Publishers.

7 Pruzan, P. (2001). The Question of Organizational Consciousness: Can Organizations Have Values, Virtues and Visions? Journal of Business Ethics, 29: 271–284. Kluwer Academic Publishers.

8 Alexander, J. & Crompton, T. & Shrubsole, G. (2011). Think of me as evil? Opening the ethical debates in advertising [report]. PIRC & WWF-UK.

Sobre o/a autor(a)

Diretora criativa. Licenciada em Design e mestranda em Ciências da Comunicação, especialização em Comunicação Estratégica
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