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A fulgurante degradação da liderança europeia

Se se fizesse o que é necessário, teríamos cooperação reforçada na saúde e financiamento por emissão de dívida. Mas seria preciso sair do deprimentismo.

Lembra-se da pomposa Conferência sobre o Futuro da Europa? Não? É natural, até agora só houve o longo dissídio sobre quem presidia e uma solução mágica, presidem todos, com assinatura do devido protocolo. A operação começará em maio e durará um ano, mesmo que ainda não se saiba se serve para uma conveniente mas esquecível operação de propaganda ou, na versão mais musculada, para discutir alterações aos tratados. No meio da confusão com as vacinas, talvez nem se dê conta desta iniciativa. É o retrato da liderança europeia: faz pouco, gere mal e o que considera mais importante pode nem ser levado a sério.

Deprimente

Na semana passada, o Conselho Europeu reuniu-se de emergência. O caso era fundamental, era preciso passar um corretivo às farmacêuticas, fazer braço de ferro com o Reino Unido, resolver problemas internos com os países que apostaram nas vacinas erradas, dois dias de trabalho intenso para deixar tudo em pratos limpos. Ao fim de uma tarde, a reunião foi encerrada, não valia a pena prolongar a inutilidade, a Comissão quer o que não pode e não pode o que quer. Foi “a triste história de um Conselho Europeu deprimente”, como escreveu Teresa de Sousa, uma analista atenta e nunca suspeita de faltar ao dever da devoção europeísta.

Se se fizesse o que é necessário, teríamos uma cooperação reforçada na saúde e uma política de financiamento por emissão de dívida que, conjugada com o BCE, libertasse as economias nacionais das condições de austeridade. Para tanto, seria preciso sair do deprimentismo. Não vai acontecer

Tinha começado bem. No início do mandato, Von der Leyen, que, como os anteriores presidentes, foi escolhida na presunção de que obedecerá aos Governos dominantes, enfrentou a pandemia com duas decisões que lhe granjearam apoio: a compra de vacinas pela União e a ‘bazuca’. Um ano depois, é precisamente nessas decisões que o seu poder chegou ao “deprimente”. Pode alegar-se que a falta de vacinas é culpa das farmacêuticas, mesmo que os 28 milhões de doses escondidas num armazém italiano tendam a desmenti-lo. Mas do que não restam dúvidas é de que a Comissão negociou contratos furados e as empresas perceberam que tinham carta branca.

O futuro depois da vacina

Vem então a questão do segundo ano da recessão. Vítor Constâncio alertou para as contas: como nenhum país quer usar os €350 mil milhões de empréstimos, exceto marginalmente, só ficam os €400 mil milhões de subsídios, menos de um terço do plano Biden, que é a segunda vaga de incentivos nos EUA, ou menos de metade do que a Alemanha gasta no seu próprio programa. Só que o tribunal alemão está a atrapalhar, os Parlamentos ainda não ratificaram, a Hungria volta a chantagear e, sobretudo, continua a não se saber como se paga a conta. Já não é só incerteza, é certeza de paralisia.

E esta é a medida do futuro da Europa. Se se fizesse o que é necessário, teríamos uma cooperação reforçada na saúde e uma política de financiamento por emissão de dívida que, conjugada com o BCE, libertasse as economias nacionais das condições de austeridade. Para tanto, seria preciso sair do deprimentismo. Não vai acontecer.

Artigo publicado no jornal “Expresso” a 1 de abril de 2021

Sobre o/a autor(a)

Professor universitário. Ativista do Bloco de Esquerda.
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