A Argentina enfrentou uma recessão durante quatro anos, que teve início em 1998 e terminou com o colapso económico em 2001/2002. O processo que conduziu a economia argentina à falência foi assim descrito por um dos porta-vozes dos “Economistas de Izquierda” da Argentina:
“O colapso económico de 2001 ultrapassou na Argentina todos os antecedentes das crises recentes nos países periféricos. Foi um descalabro que reproduziu todos os traços da grande depressão: expropriação dos pequenos aforradores, falência de empresas, fecho de lojas, desaparecimento da moeda em circulação, empobrecimento massivo, desemprego generalizado, desespero da classe média e emigração de profissionais. Uma queda desta dimensão nunca se tinha registado no passado” (Cláudio Katz).
Esta crise, que afectou toda a população argentina, foi particularmente penosa para as massas populares, que enfrentaram um gradual processo de empobrecimento. Em 2005, três anos depois de recuperação e já com um crescimento acumulado de cerca de 20%, os funcionários públicos tinham perdido 28% dos seus salários em relação a 1998 e o conjunto dos trabalhadores tinha perdido dois meses de salário por ano. O desemprego atingia 27% da população e a inflação, associada à desvalorização da moeda, corroía os salários e as pensões cada vez menores.
Os factos e os números da crise argentina, que teve como ponto alto a suspensão dos pagamentos de dívida e a desvalorização do peso, exigem cuidado na análise, principalmente à esquerda. Tomar de ânimo leve o processo argentino como exemplo do que deve ser a nossa resposta perante o FMI é sinal de ignorância em relação aos factos e à própria experiência das esquerdas argentinas na sua luta contra a dependência e recessão.
A recessão Argentina começou antes de 2001, quando se deu o colapso dos pagamentos da dívida pública e externa (privada). A Argentina está entre os maiores exportadores do mundo no sector agro-alimentar, dispondo por isso de superavits comerciais elevados, mas foi penalizada pelo atrelamento do peso ao dólar a partir de 1991, como forma de tentar controlar a hiperinflação do país. A consequência desta política foi uma queda abrupta nas exportações e no investimento estrangeiro quando, em 1999, o Brasil desvalorizou o seu real. Este facto, conjugado com o peso de uma dívida externa (cerca de 160% do PIB – compare-se com Portugal em que é 300% do PIB) e pública levou ao aumento dos juros e a um efeito dominó com a fuga de capitais (metade dos depósitos bancários), provocada em particular pelas empresas e pela finança.
O boato de que o ministro da Economia Domingo Cavallo poderia desvalorizar a moeda agravou o processo de fuga de capitais e deu início a uma corrida “silenciosa” aos depósitos bancários em pesos, para serem transformados em dólares e depositados no exterior.
Em resposta ao aumentos dos juros, a dívida pública é alvo de uma reestruturação forçada no valor de 132 mil milhões, e são suspensos os pagamentos da dívida externa privada, no valor de 50 mil milhões. Para impedir a corrida aos bancos, o governo impõe limites ao levantamento de dinheiro (1000 dólares mensais) e congela as contas bancárias. O FMI corta os empréstimos ao país e fecham-se as restantes fontes de financiamento externo à Argentina.
Sem formas de pagamento e crédito na economia agrava-se a depressão e o desemprego que conduzem a fortes protestos, não só dos desempregados, como também da classe média afectada pelas restrições financeiras. As pilhagens e violência obrigam à demissão do Presidente que é sucedido por outros três em duas semanas.
Em Janeiro de 2002, Eduardo Duhalde é escolhido Presidente e procede ao fim da convertibilidade entre o dólar e o peso e a uma desvalorização da moeda argentina. Converteu ainda os depósitos, empréstimos e contratos para a moeda local.
O efeito da desvalorização da moeda é fácil de identificar: tornou as importações mais caras (prejudicando a indústria e encarecendo o consumo) e as exportações mais baratas (favorecendo a burguesia agro-exportadora, a grande beneficiária do processo).
Quanto ao pagamento da dívida externa, o processo tem efeitos mais complexos. À Argentina não restava outra alternativa, porque já lhe tinha sido cortado o acesso a créditos nos mercados financeiros desde há um ano. Mas os governos não romperam com estes mercados, e os defensores do “modelo argentino” parecem de facto ignorar os factos para elogiar um governo que não merece tal distinção: o que o Estado argentino fez foi suspender unicamente os pagamentos aos credores privados internacionais (32% da dívida) e desdolarizar os créditos internos, desvalorizando-os desse modo (41% da dívida). A restante dívida, ao FMI, Banco Mundial e BDI, foi sendo paga ao longo dos anos da crise: em 2001 pagou 4550 milhões de dólares e no ano seguinte comprometeu 22% do Orçamento para juros.
A desvalorização foi também um instrumento para reduzir salários e pensões, tanto porque o seu valor real se reduz imediatamente, quanto porque os preços dos bens importados aumentam. Os depositantes perderam parte das suas poupanças - 23 mil milhões de dólares – e quem estava endividado ficou a dever mais.
A política adoptada teve consequências que podem ser medidas com rigor: o PIB reduziu-se em 4,4% em 2001 e 11% em 2002. O desemprego atingiu os 42%(registado e não registado) e os salários reais atingiram o seu menor valor em 60 anos. O numero de argentinos abaixo do limiar da pobreza passou de 38,3% em Outubro de 2001 para 57,5% em 2002.
A recuperação da economia nos anos seguintes deve-se a três factores conjugados: alguma aposta na reindustrialização do país, mas sobretudo a exploração acrescida do trabalho embaratecido e a redução do custo cambial das exportações (daquele que já era um dos maiores exportadores do mundo).
As situação da Argentina e de Portugal são diferentes. A Argentina tinha um défice da balança corrente em 2001 de 4,6 biliões de dólares que facilmente se transformou em superavit em 2002 (9 biliões) devido à sua posição de grande exportador mundial. Portugal tem um défice quatro vezes superior ao Argentino em 2001 e está longe de ocupar um lugar de destaque nas economias exportadoras.
As consequências da política seguida então na Argentina, pelo contrário, têm notáveis semelhanças com as da política do FMI e da troika PS-PSD-CDS em Portugal: destruir o trabalho e favorecer o capital.