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França insubmissa (a Macron)
Em outubro de 2013, uma rapariga cigana de 15 anos, residente em França, foi presa durante uma visita de estudo da sua escola. A ordem para parar o autocarro foi dada pela polícia através de um telefonema do presidente da Câmara de Levier à professora de Geografia: “Um polícia explicou-me que tinha de prender a aluna, que estava em situação irregular. Eu disse-lhe que não me podia pedir uma coisa tão desumana, mas ele respondeu que ia haver eleições e que eu devia parar imediatamente o autocarro.”
Apesar dos apelos à humanidade feitos pela sua professora, Leonarda Dibranni acabou por ser levada, perante o olhar incrédulo dos colegas na escola que frequentava há cinco anos e, horas depois, deportada com a família para o Kosovo. A onda de indignação acabou por obrigar o presidente Hollande a admitir o regresso da adolescente, mas apenas se deixasse a família para trás, o que ela recusou.
Já não é a primeira vez que escrevo sobre este episódio e parece-me oportuno voltar a ele à boleia dos últimos acontecimentos em França. Acontece que o responsável pela prisão e deportação da família de Leonarda foi o então ministro do Interior, Manuel Valls, conhecido por ter expulso mais imigrantes do que Sarkozy, movido pela convicção de que “os ciganos têm vocação para voltar à Bulgária e à Roménia”.
Quando, em abril de 2014, as eleições trouxeram ao Partido Socialista francês um premonitório desaire, perdendo mais de 150 municípios para a direita de Sarkozy e para a extrema-direita de Le Pen, Hollande reconheceu o resultado como castigo do povo, disse ter aprendido a lição e prometeu mudar. Em vez disso, nomeou Manuel Valls primeiro-ministro, um centrista com vocação para políticas racistas.
O resultado está à vista. Desiludidos, muitos dos trabalhadores que acreditaram nas promessas de combate à austeridade com que Hollande foi eleito acabaram por votar em Le Pen. Sem alternativa social, era tarde demais para o Partido Socialista francês encenar um discurso sobre liberdades e solidariedade que abandonou há muito.
Duas voltas e um susto depois, o anúncio de que Valls deixa o Partido Socialista para concorrer para deputado nas listas do En Marche! de Emmanuel Macron não surpreende ninguém. Pelo contrário, parece ser sintomático da rearrumação de forças ao centro que levará à deserção de muitos setores da direita e do hollandismo para as fileiras de Macron. Com eleições legislativas à porta, a criação de um bloco central mostra-nos que a anunciada morte dos partidos tradicionais não significa o abandono do seu programa.
Esse é o maior problema da França pós-eleições: é a mesma França. O alívio geral pela recusa de Le Pen não tem como espelho o entusiasmo pelas promessas de Macron. O homem que considerou Merkel uma líder visionária, partilha com ela a imagem da crise, quer um ministro das Finanças europeu – como se Schäuble não fosse sinistro o suficiente –, acha que a solução para o desemprego está em desfigurar o Código do Trabalho. A cada sobressalto, a União Europeia treme, mas realinha com a austeridade. Até ao seguinte.
Na defesa do diretório europeu e dos mercados, Macron ignora que foi eleito pelo medo e despreza os 20% dos eleitores que votaram em Mélenchon. Olhando para os resultados da primeira volta, o que lhe falta em apoio popular, Macron compensa com a arrogância de porta-
-voz das elites. Não é de esperar que a insistência nas mesmas políticas sem um projeto de recuperação dos direitos sociais consiga estancar Le Pen e o seu discurso fácil de “proteção aos franceses” e ódio aos estrangeiros.
A grande novidade destas eleições não foi a confirmação da extrema-direita como um perigo iminente, mas o crescimento de uma esquerda que pode estancar e fazer recuar os projetos xenófobos e reacionários. Essa esquerda também terá de se reagrupar num projeto de democracia e direitos sociais para disputar maioria, e isso passará, em primeiro lugar, por ser uma oposição mais forte, mais democrática e mais clara à presidência de Macron do que a Frente Nacional.
Artigo publicado em ionline.sapo.pt a 10 de maio de 2017
Comentários
A atual vida política da
A atual vida política da França me faz supor que se trata da de alguns países da américa latina. Não pelas ideias ( ou falta delas ) em debate, mas pela qualidade ( a falte de, seguramente ) dos personagens e intérpretes: excluído Mélenchon, que indigência intelectual e moral ! ...
As próximas eleições legislativas serão - por muito tempo, creio - a grande oportunidade de clarificação de ideias, princípios e seus porta-vozes. No campo da chamada "esquerda", que prefiro designar por "progressistas", esgota-se o tempo da arregimentação e coordenação de um ( formal ou informal ) programa mínimo de confluência de objetivos, capazes de se opor ( tanto quanto possível, se contrapor ) à onda conservadora, até mesmo retrógrada, prometida por Macron e que, suspeito, Le Pen e adjacências, com ou sem discrição, não deixarão de apoiar e incentivar ...
Penso que Mélenchon carrega agora a responsabilidade de, sem abdicar do puro horizonte que tão bem defendeu, flexibilizar a sua intervenção ao encontro dos segmentos e dos parceiros que, embora com diferentes estratégias e calendários, poderão somar forças para uma combativa presença no cenário que contém o fosso político em que o desastre Hollande mergulhou as expectativas de a França ser uma indispensável bandeira progressista na Europa. Ele tem a responsabilidade de abrir espaço à formatação da "Geringonça" francesa ainda que isso possa exigir-lhe no imediato a renúncia ao seu comando institucional ou, mais pesadamente se for o caso, assumindo este com as necessárias cedências na co-liderança.
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