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A família que importa mesmo é o negócio

O facto de o marido ser ministro impede a mulher de ser chefe de gabinete de um secretário de Estado noutra área (ou vice versa), a resposta sensata é não.

Discute-se a virtude da família no Conselho de Ministros e aqueles que garantem que essa é a base transcendente da sociedade estão zangados com o Governo, não se percebe se porque sim se porque não. A questão tornou-se em todo o caso um delicioso tema das alfinetadas entre Cavaco e Marcelo, um must da política nacional, entre o Governo e a direita, que precisa de um cheiro de confusão, e até entre a esquerda e o Governo, que manda o seu bulldozer arrasar quem pede “reflexão”, que aqui na parada ai de quem refletir.

Permitam-me então dissentir. Sem prejuízo do constrangimento que o laço familiar pode causar numa instituição, o que o desaconselha na mesma sala, desde sempre que vivemos sob a tutela de uma outra rede de relações de dependência governamental de grandes famílias, e essa decisiva. Essas famílias ocuparam sempre a maioria dos cargos governamentais e fizeram-no estratégica e criteriosamente. Mais vale olharmos então para o que importa mesmo (o ministro “anónimo” reapareceu no “Público” para chamar lucidamente a atenção para este ponto).

O poder como família de famílias

Num livro, “Os Burgueses”, investiguei com dois colegas, e há um par de anos, o percurso profissional de todas as 776 pessoas que foram ministros ou secretários de Estado nos 19 governos constitucionais desde 1976 até 2013, excetuando portanto os dois últimos governos e o atual, todos posteriores ao estudo. Do PSD foram 296 governantes, do PS 295 e do CDS 54, havendo 81 independentes. Verificámos, sem surpresa, que algumas empresas foram a escola dos campeões nas trajetórias governamentais.

Como nos interessava em especial essa ligação dos governantes, medida pela presença em conselhos de administração, antes ou depois, ou antes e depois do cargo público, verificámos se havia uma diferença notória entre os trajetos de gente do PS e do PSD nessas relações. Sim, há diferenças, mas ligeiras: dos governantes do PS, 47% tinham ou criaram ligações com as empresas, ao passo que o número sobe para 64% no PSD. Nos governos Durão Barroso-Paulo Portas e Santana Lopes-Paulo Portas chegou a haver quatro governantes com ligações empresariais para um que não as tivesse. E o atual é o primeiro Governo do PS que não tem um representante destacado do Grupo Espírito Santo (é certo que este também já não existe).

A família financeira é a mais carinhosa

Destes 776 governantes, 230 foram da finança para o Governo ou saíram do Governo para a finança ao longo da sua vida. O PSD tem vantagem nesta corrida, pois aí se encontram 75 governantes do PS mas 102 do PSD. Se cuidamos da evolução de todos os ministros das Finanças, temos que 14, entre 17, prosseguiram ou fizeram carreira em instituições financeiras. No PSD, foram quase todos: oito em nove. No PS, idem: seis em oito. Os ministros das Finanças vão para a finança, parece ser o seu destino garantido e, entre todos os governantes, um em cada três teve ou passou a ter lugar de topo na finança.

Se registarmos as relações com os grandes grupos económicos, estes albergam 53 governantes do PS e 90 do PSD. Se se tratar especificamente das empresas do PSI20, foram 51 do PS e 68 do PSD. Se olhamos em contrapartida para as parcerias público-privadas, o mapa tem uma diferença um pouco mais acentuada, 35 do PS e 53 do PSD.

E, se perguntamos qual foi o “efeito promoção”, ou seja, quantos destes governantes não tinham cargos empresariais de topo antes de ocuparem funções governamentais mas passaram a tê-los depois de saírem do Governo, temos 79 do PS e 83 do PSD e CDS: um em cada quatro dos governantes de todos os governos constitucionais não era e passou a ser administrador. Estas pessoas foram para a finança (113), para a indústria e energia (92) e menos para o imobiliário e comunicações (43 cada).

Amor familiar

O que estes dados verificam é que, na sociologia dos percursos profissionais, há alguma diferença entre as origens e os destinos dos governantes do PS e do PSD, mas que é pouco significativa, com exceção de quando se trata do apetite pela finança, em que parece haver a mesma motivação e tipologia de relacionamento.

O argumento segundo o qual o PS tem de recrutar governantes entre familiares que têm o mesmo percurso partidário, porque esse é o seu meio natural, ao passo que o PSD os vai buscar a empresas, onde se move mais à vontade, cai portanto por terra. Ambos os partidos, cada um à sua maneira, têm cultivado intensas relações empresariais, que lhes devolvem o cuidado recrutando os seus dirigentes e ex-governantes para cargos de topo.

É certo que estes factos sobre a “porta giratória” têm sido contestados por alegadamente ignorarem a falta de alternativas profissionais dos ex-governantes. Não vou levar a sério essa objeção até que me provem que os banqueiros ou administradores de PPP têm mesmo de ser recrutados entre ministros e secretários de Estado, ou que estes não podem ter outros empregos que não nas administrações, incluindo nas empresas dos sectores que tutelavam como governantes (e alguns, se bem poucos, evitaram ir por aí). Não. É mesmo amor familiar. E estas famílias precisam de ser levadas a sério.

Assim, se perguntamos se o facto de o marido ser ministro impede a mulher de ser chefe de gabinete de um secretário de Estado noutra área (ou vice versa), a resposta sensata só pode ser não. Mas a pergunta que importa é outra: e quando um grupo económico está em todos os governos e até se descobre que pagaria uma mesada a um ministro em funções, não será que isso revela como foram as privatizações e as PPP?

Artigo publicado no jornal “Expresso” a 30 de março de 2019

Sobre o/a autor(a)

Professor universitário. Ativista do Bloco de Esquerda.
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