Falta pão, mas os brioches serão tão bons

porFrancisco Louçã

04 de junho 2023 - 12:32
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Cavaco Silva quis derrubar Santana Lopes, aliou-se a Sócrates e depois desaliou-se, atacou Marcelo Rebelo de Sousa, tudo sempre pela mesma razão, a sua tutela do PSD.

Como orquestra afinada, os advogados do Governo relançaram um teaser poderoso que falhou na semana passada quando Galamba os atropelou, mas agora é o tempo da ofensiva: ignoremos aqueles preliminares artísticos, está a chegar o filme das nossas vidas, serão rios de abundância que vão iluminar de alegria os lares dos pacatos portugueses. Vem aí um crescimento da economia como nunca se viu, até as agências internacionais se atropelam nas subidas das suas perspetivas (embora, sacripantas, digam que esta bonança termina no ano seguinte, a prova de que nisso não sabem do que falam). Espere, portanto, que sempre será alcançado, vai-lhe chegar o fruto do sacrifício. Não há agora pão, mas amanhã os brioches serão saborosos, o fruto do nosso trabalho, o merecimento pela nossa paciência. Para esta operação, António Costa, matreiro como só ele, mobilizou a palavra tão respeitada de um dos seus mais ácidos críticos, Aníbal Cavaco Silva.

Ouçam o especialista em ciclos económicos

Cavaco Silva, na angústia do fim dos seus mandatos, longos que foram, e na saudade de si próprio que de vez em quando enuncia em discursos contundentes, tinha criticado o Governo num congresso de autarcas do PSD. Foi um delírio, não tanto para Montenegro, que não é capaz daquilo mesmo que tenha sido ungido. A análise política tem destes entusiasmos, tantas vezes frívolos mas não menos empolgados: os mesmos que endeusaram Costa pela magnificência da sua rasteira a Marcelo ao manter Galamba, que domínio da tática!, vieram agora dizer que finalmente a direita tem uma voz, porventura sem se darem conta de que o milagre que Cavaco pede — só faltam 9% e as contas estão mal feitas — tem pelo meio uma coisa que se chama Chega.

O crescimento económico real, anémico desde há 20 anos, continua e continuará fora do bolso das pessoas

É por saber desta geografia que Costa aproveitou para elogiar Cavaco. Chamou-lhe mesmo “um dos destacados especialistas internacionais em ciclos económicos”, o que só pode ser piada. Como se sabe, o ex-Presidente não se dedicou a uma carreira académica ou científica por ter empenhado a vida toda na política, desempenhando os cargos mais destacados, o que o levou, aliás, a confiar no BES e noutros amigos que deixaram má memória. Nisso terá vivido os ciclos políticos e económicos, mas daí a erigi-lo como um “especialista internacional” vai alguma distância: é um operador nacional e provou-se ser poderoso. Ora, qual é o truque de Costa? É simplesmente alegar que, se Cavaco intervém agora, é pelo pânico do tal rio de abundância cuja evidência daria ao PS a devoção eterna de um povo agradecido. Resulta pelo menos em alguns dos sectores que oscilam sempre entre PS e PSD, a fazer fé em Teresa de Sousa, que ora apoia um, ora apoia outro, e que agora repete a canção do brioche-que-está-a-chegar.

É um truque. Cavaco Silva fez outras intervenções pela mesma razão que a atual: quis derrubar Santana Lopes, aliou-se a Sócrates e depois desaliou-se, atacou Marcelo Rebelo de Sousa, tudo sempre pela mesma razão, a sua tutela do PSD e a tentativa de impulso a um cavaquismo modernizado. Cavaco acredita tanto como cada uma das pessoas que lê esta prosa naquela promessa de abundância e não é isso que o move.

Brioches

Quem acredita mesmo no que gostava que Cavaco acreditasse é o primeiro-ministro. Há nisto um jogo de espelhos: eu digo que tu dizes o que eu penso que devias pensar. O problema, mais uma vez, é que na substância o primeiro-ministro ou não conhece o país ou conhece-o bem demais e já não quer perceber os problemas.

De há dois anos, toda a sua política é o PRR. Foi um fartote nas autárquicas, com algum descaramento que roçou o jardinismo madeirense, se és do PS tens bónus PRR repetiu-se nas legislativas e o Governo não esconde a certeza de que o país será renovado com este orçamento suplementar. Costa entende, suponho que sinceramente, que a obra da sua vida e o seu lugar na história serão dados pelos monumentos do PRR e pelas placas que evocarão a sua inauguração. Triste engano. Engano, em primeiro lugar, pois uma parte deste dinheiro vai esvair-se na substituição de investimento que as empresas poupam e distribuem em dividendos e na imposição do seu poder: por exemplo, a obra do Metro de Lisboa, ainda no início, já tem mais de 30% de desvio, coisa normal, e, como já se notou, até para receber o Papa volta o velho país destes orçamentos generosos, a operação custa o dobro da de Madrid, o dinheiro para algum lado irá.

E engano, em segundo lugar, dado que estes fundos do PRR recuperam uma pequena parte do que os Governos deixaram de investir por decisão da restrição orçamental que levou à degradação dos hospitais, da ferrovia, dos serviços públicos em geral, mas não resolvem nenhum problema estrutural. Haverá mais edifícios de centros de saúde, mas alguns estarão fechados por falta de pessoal. Para as pessoas, o que conta é a impossibilidade de terem uma consulta médica, o medo de que as pensões sejam comidas pela inflação e o peso dos juros. Nisso não há PRR e nem sei se o “especialista internacional em ciclos” se deu conta de que os juros baixaram quando a dívida aumentou e sobem quando a dívida baixa, por só dependerem de um BCE que agora nos está a tramar. O crescimento económico real, anémico desde há 20 anos, continua e continuará fora do bolso das pessoas, que sabem que os brioches são mais juros e comida mais cara. A operação “esqueçam o Galamba” é inútil, não porque o caso não seja só um sintoma, mas pelo facto pesado de que a vida piora para quem vive com dificuldades.

Artigo publicado no jornal “Expresso” a 26 de maio de 2023

Francisco Louçã
Sobre o/a autor(a)

Francisco Louçã

Professor universitário. Ativista do Bloco de Esquerda.
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