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A Europa sangra em Moria

A ilha de Lesbos é o exemplo maior do monumental fracasso da Europa e das suas políticas migratórias. Esta vergonha não pode continuar.

As chamas levaram tudo na frente, deixando milhares ao relento sem mais do que a roupa do corpo. O incêndio no campo de refugiados de Moria, na ilha de Lesbos, é o epílogo de uma história que só pode envergonhar a Europa. As cinzas são agora comprovativo do desastre, mas a tragédia humanitária já comandava os destinos do “pior campo” da Europa.

A ilha de Lesbos é o exemplo maior do monumental fracasso da Europa, das suas políticas migratórias e das escolhas feitas ao sabor de preconceitos ultrarreacionários impulsionados pela extrema direita

É possível uma ilha paradisíaca ter virado o inferno na Terra para milhares, uma prisão onde o suborno é lei e o tráfico de pessoas a única fuga? E porque se fechou os olhos durante tanto tempo, porque se ignoraram os avisos de tantas organizações humanitárias sobre um campo de refugiados que era uma enorme bomba relógio? A responsabilidade mancha as mãos dos responsáveis da União Europeia, promotora de uma desumana política de detenção de requerentes de asilo, que prefere pagar centenas de milhões de euros para o autoritário governo turco aterrorizar refugiados do que respeitar os direitos humanos de quem foge da guerra e da fome.

Como pode perder tudo alguém que nada tem? Quando lhe negam o mais essencial, a dignidade e a humanidade – era esse o significado do campo de refugiados de Moria. O incêndio retira da invisibilidade os milhares de refugiados, hoje já não os podem ignorar ou assobiar para o lado. A União Europeia não pode continuar a desrespeitar milhares de pessoas – muitas das quais crianças, mulheres e idosos com patologias associadas.

A pandemia não serve de desculpas. Há mais de cinco anos que Moria era sinónimo de inferno e não fizeram nada. A revista Der Spiegel já há anos tinha feito uma reportagem sobre este campo, ao qual chamou "a vergonha da Europa", onde denunciava a desumanidade das condições de vida: viviam no campo de refugiados quatro vezes mais pessoas do que a sua real capacidade, chão era uma sopa de lama, as pessoas viviam apinhadas em tendas onde entravam ratos e cobras, a insegurança era total em particular para as mulheres.

O presente é de desespero. Afirmou uma das voluntárias portuguesas que prestava auxílio em Moria que a “situação é de caos total e absoluto”. Sem sítio onde dormir, sem respostas para as necessidades mais básicas, as pessoas fugiram em direção às localidades vizinhas, mas a resposta que tiveram foi a de criação de bloqueios montados pelas forças policiais. Depois do fumo do incêndio, chegaram as granadas de gás lacrimogéneo da polícia de choque, a desumanidade não tem fim.

Face à tragédia, a União Europeia tardou a reagir e ainda nada decidiu. Alemanha e França admitem receber alguns refugiados, mas em pequeno número e sem colocar em causa a política migratória que está na origem do desastre. E o Governo de Portugal, o que fará?

Moria fazia parte de um sistema europeu de dissuasão, um espaço de detenção de pessoas sem qualquer tipo de condições, uma montra de horrores para assustar quem possa ter a intenção de arriscar a vida no cadafalso do Mediterrâneo. É, propositadamente, um cartão de visita para os refugiados com a mensagem muito clara: não são bem vindos, a solidariedade não mora aqui, a vossa vida não nos merece compaixão. O ministro adjunto dos Negócios Estrangeiros da Grécia reconheceu isso há poucos meses, quando disse em Lisboa “não queremos passar a mensagem de que toda a gente que chega à Grécia vai sair dos campos logo de imediato”. O campo de refugiados pode ter sido destruído pelo incêndio, mas a política europeia que o criou ainda está de pedra e cal e é isso que temos de mudar.

A ilha de Lesbos é o exemplo maior do monumental fracasso da Europa, das suas políticas migratórias e das escolhas feitas ao sabor de preconceitos ultrarreacionários impulsionados pela extrema direita. As imagens que nos chegam, os gritos de desespero, os pedidos de ajuda, não nos deixam indiferentes e têm de obrigar os governos europeus à mudança de posição necessária. Esta vergonha não pode continuar.

Artigo publicado no jornal “Público” a 11 de setembro de 2020

Sobre o/a autor(a)

Deputado, líder parlamentar do Bloco de Esquerda, matemático.
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