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Europa mostra medo da democracia

O governo português coloca-se sempre ao lado das chancelarias, que suportaram, financiaram, negociaram, confortaram e elogiaram estas ditaduras que o povo árabe está a derrubar agora.

De Tripoli e de Benghazi chegam ecos de exibições de barbárie. No estertor do seu consulado, Khadafi mandou bombardear os gritos pela liberdade. São crimes contra a humanidade que hoje se multiplicam na Líbia. Venho por isso manifestar a preocupação e protesto contra esses ataques aos direitos humanos, contra a violência que atinge as populações, contra as ameaças que o regime multiplica prometendo um banho de sangue. A essa preocupação junta-se naturalmente a que abrange todos os residentes na Líbia, incluindo os cidadãos portugueses que optem por partir ou por ficar no país, esperando que a sua segurança seja garantida e protegida.

Mas os riscos estão a crescer. E este problema de liberdade e segurança é também nosso, dos povos da orla do Mediterrâneo e de todos os que lutam pela democracia. Porque, a coberto de uma complacência cúmplice dos governos europeus, a crise na Líbia só se tem agravado. Ao silêncio e à tibieza com que esses governos encararam as manifestações de Tunes e do Cairo que puseram fim às ditaduras de Ben Ali e de Mubarak, até então acolhidas como amigos e parceiros estratégicos, as chancelarias europeias somam agora uma frieza hipócrita diante dos massacres perpetrados por Khadafi. A Europa tem evidenciado nesta vaga de transformações democráticas um cinismo e uma hipocrisia que mostram bem o que vale, na prática, o credo humanista e democrático com que os seus líderes de ocasião enchem a boca. A Europa está muito mais preocupada em cobardemente fechar os líbios dentro das suas fronteiras e em evitar que cheguem a Lampedusa, a Marselha ou a Algeciras as mulheres e homens que fogem à repressão do que em salvar vidas humanas e em repudiar os crimes do ditador que matam e torturam quem combate a decrépita tirania.

A Europa está mais uma vez a falhar-nos, está a desertar da luta pelos direitos humanos, está a calar-se perante a emergência democrática. Mas, ao ser cobarde, os poderes europeus são sobretudo politicamente míopes. As lideranças europeias não aprenderam nada com a revolta da rua árabe. Insistem em ficar geladas diante das mobilizações populares que nas praças exigem a queda das ditaduras porque nessas demonstrações de coragem cívica só conseguem ver o risco do fanatismo islamista.

Mas essa prudência não é mais do que um disfarce da ignorância e do cinismo: a Europa não quer perceber que o seu apoio ignóbil às ditaduras no Magrebe e em todo o mundo árabe, ao longo de décadas, foi um dos alimentadores mais importantes da sedução desses povos pelos discursos irredentistas. Como disse muito acertadamente a eurodeputada Ana Gomes, “se há um perigo fundamentalista ou terrorista, ele resulta do apoio a Khadafi e à sua ditadura sanguinária.”

A Europa errou e continua a errar, porque mostra medo da democracia. Afinal, nada que nos surpreenda: de quem teme que os próprios europeus se pronunciem sobre os destinos da Europa não se esperava outra coisa que não fosse a indiferença cúmplice diante da democracia querida por quem está aqui ao lado.  

Há duas semanas, PS e PSD juntaram-se aqui na Assembleia da República para reprovar um voto do Bloco de Esquerda de saudação à luta pela democracia no Egipto. Prudência, recomendaram-nos. “Moralismo bacoco”, sentenciou a bancada do PS. Para esta coligação que nos governa, a diplomacia económica é um detergente que tudo branqueia e que aniquila princípios e inteligência política às mãos do império dos negócios. O Bloco de Esquerda quer ser claro a respeito do que de essencial está aqui em jogo: é da maior importância uma estratégia coerente de internacionalização das relações económicas do país e Portugal deve ter relações normais no comércio, na energia e na indústria, com os outros países. Mas há uma fronteira entre a diplomacia económica e a promiscuidade com as cleptocracias e ela tem que ser nítida e intransponível para qualquer democracia que se preze.

Que Portugal tenha relações comerciais normais com qualquer país do mundo é do domínio da sensatez. Mas que os nossos governantes declarem a sua admiração pelos tiranos, que façam de figurantes nas suas operações de relações públicas, que enviem as Forças Armadas para abrilhantarem o cerimonial do regime, que contribuam para ocultar a realidade da pobreza que é imposta a estas populações, isso é totalmente inaceitável. Que o Primeiro Ministro José Sócrates qualifique Khadafi como um “líder carismático” ou que o Ministro dos Negócios Estrangeiros tenha marcado presença na sumptuosa tenda em que se comemoraram os 40 anos do regime líbio, isso é algo que a diplomacia económica não pode justificar.

De facto, Luís Amado, que hoje protestou contra a violência nas ruas líbias, há dois dias, quando os mortos já se contavam às centenas, não só não condenou o regime por esses massacres como entendeu que a prioridade era advertir contra os riscos do extremismo islâmico por trás das manifestações populares que exigiam democracia. Quem viu, como todos vimos, a inenarrável conferência de imprensa de ontem em que Khadafi, durante quase uma hora, usou esse mesmíssimo argumento dezenas de vezes, só pode ter sentido vergonha com o paralelismo objectivo entre o raciocínio de Luís Amado e a argumentação de um torcionário. A correcção de hoje não muda a brutal insensibilidade de ontem.

Porque há em toda a política do governo português um elemento essencial de continuidade. O governo coloca-se sempre ao lado dos silêncios, do lado da obediência a interesses particulares e não ao lado do interesse geral que é a liberdade, a segurança e a democracia. Sempre ao lado das chancelarias, que suportaram, financiaram, negociaram, confortaram e elogiaram estas ditaduras que o povo árabe está a derrubar agora, num efeito dominó que leva a voz dos jovens tunisinos à Praça da Liberdade no Cairo e aos bairros de Tripoli. Mas a todos esses o governo português responde com a subserviência.

É este governo seguidista e subserviente que recebe neste mesmíssimo momento o Embaixador de Marrocos para significar que Portugal não faz sua a exigência da ONU de um referendo para a auto-determinação do Sahara Ocidental. Repete o apoio aos ditadores sobreviventes, para se manter nas suas boas graças. Continuísmo, subserviência e obediência, em vez de democracia, de clareza nas relações externas, fidelidade aos valores essenciais - eis o que torna insignificante a diplomacia do Estado Português.

Declaração Política na Assembleia da República feita a 23 de Fevereiro de 2011

Sobre o/a autor(a)

Professor Universitário. Dirigente do Bloco de Esquerda
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