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A estratégia que falta

Ainda não foi com este governo que a participação das pessoas com deficiência e suas famílias passou a ser regra, tal como é exigido na Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência.

A primeira palavra que me ocorre é desânimo. Na realidade, o que observamos à nossa volta é uma enorme descrença das pessoas com deficiência e das suas famílias. A expectativa criada com a entrada em funções deste governo foi enorme: Era agora que as pessoas com deficiência iam deixar de ser cidadãs de segunda; era agora que íamos ter voz e ser ouvidos.

Afinal, embora tenham existido avanços reais em relação às políticas austeritárias do Governo PSD/CDS, de que destaco a implementação da prestação social para a inclusão (PSI) e a regulamentação das quotas de emprego nas empresas privadas, ainda não foi com este governo que a participação das pessoas com deficiência e suas famílias passou a ser regra, tal como é exigido na Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, nem deixou de ser, quando acontece, um pro forma em que as suas necessidades e opiniões não se traduzem em políticas concretas.

O facto de ainda não haver a definição de uma estratégia para as políticas na área da deficiência é o sinal mais evidente deste divórcio entre o governo, as pessoas com deficiência e as suas organizações representativas

O facto de ainda não haver, ao fim de três anos, a definição de uma estratégia para as políticas na área da deficiência é o sinal mais evidente deste divórcio entre o governo, as pessoas com deficiência e as suas organizações representativas.

No início desta legislatura estava prevista a execução de um livro branco em que se fundamentaria uma estratégia para a deficiência. Aliás, o comité sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência das Nações Unidas estabeleceu o prazo de um ano para o Estado Português apresentar as medidas adotadas relativas à execução de uma nova estratégia nacional. Esse prazo acabou em Abril de 2017, tendo o governo respondido no mês anterior que iria desenvolver uma nova estratégia que se designaria Livro Verde e Agenda para a Inclusão[1]. Disse também nessa comunicação que o calendário estava estabelecido e que as organizações de pessoas com deficiência seriam consultadas no processo. Já passaram quase dois anos e não há livro branco ou verde nem estratégia ou agenda.

A existência de uma estratégia, construída com a participação efetiva das pessoas com deficiência, tal como é exigido na Convenção, seria a garantia de que as políticas sectoriais para a deficiência, que abrangem as mais diversas áreas da vida, se articulam e respeitam os direitos humanos. Não podem existir dúvidas sobre qual o objetivo a atingir. É a fruição total dos direitos inscritos na Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência.

 

Para atingir esse objetivo é imprescindível uma estratégia bem definida, em que se estabeleçam prioridades e definam as ações necessárias, o calendário da sua execução, sejam calculados os custos e identificada a origem do financiamento necessário bem como os responsáveis pela execução das ações previstas. Só assim será possível materializar os direitos inscritos na Convenção, mas também, e não menos importante, a existência de uma ferramenta que possibilitará o controlo e avaliação pelas pessoas com deficiência da execução e adequação das políticas governamentais.

Sem uma estratégia, sem objetivos claros e sem sabermos qual o caminho que nos propõem, assistimos à concretização de políticas erráticas e contraditórias

Agora, sem uma estratégia, sem objetivos claros e sem sabermos qual o caminho que nos propõem, assistimos à concretização de políticas erráticas e contraditórias.

Não é admissível, por exemplo, a perpetuação e incentivo à institucionalização quando simultaneamente se apregoa o apego a mudanças de paradigma como a filosofia de vida independente. Só esta persistência de conceitos ultrapassados e o receio de uma mudança efetiva de paradigma pode explicar o que se passou com o processo de implementação dos projetos-piloto de Vida Independente.

Se a lei que enquadrou os projetos-piloto já continha em si aspetos contraditórios com a filosofia de Vida Independente - como, por exemplo, a entrega às IPSS da gestão dos projetos-piloto - a imposição de um limite de financiamento para cada Centro de Apoio à Vida Independente (CAVI) vem inviabilizar o próprio cumprimento da lei. De acordo com a lei os utilizadores de assistência pessoal teriam direito até 40 horas semanais de assistência prevendo-se ainda que 30% deles, aqueles com maiores dependências, poderiam chegar às 24 horas diárias de apoio. Com o patamar de financiamento máximo de 1.400.000 euros para cada CAVI, para os 3 anos de projeto, o que constatamos é a existência de Centros que terão 50 utilizadores (o máximo previsto na lei) que não terão direito sequer a 20 horas de assistência semanal média por utilizador, metade do que a lei lhes prometeu. Para não falar daqueles com grande dependência a quem disseram que poderiam ter até 24 horas diárias.

Isto não é Vida Independente. Vida independente pressupõe, entre outras condições, o acesso a um serviço de assistência pessoal que garanta as horas de assistência necessárias para qualquer pessoa com deficiência possa decidir onde, como e com quem viver. É autodeterminação e poder de decisão sobre a sua vida. Como é que uma pessoa, dependente de terceiros, pode exercer esse poder se tem apenas 2h30m por dia de assistência?

Os projetos-piloto, com este formato, são a perversão do conceito de vida independente, com a agravante de poderem vir a perverter também a legislação de vida independente que deverá resultar desta experiência piloto.

É essencial recuperar a matriz fundadora da vida independente, assegurando a sua implementação efetiva. Implementar a vida independente implica respeitar as pessoas com deficiência, a nossa autonomia e capacidade de decisão

É essencial recuperar a matriz fundadora da vida independente, assegurando a sua implementação efetiva. Implementar a vida independente implica respeitar as pessoas com deficiência, a nossa autonomia e capacidade de decisão.

Implementar a vida independente implica escolher lados: o assistencialismo ou a vida independente. Daí a urgência de uma estratégia que se fundamente na Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e que, ouvindo-as, corresponda às suas necessidades.

Não podemos adiar mais.

Cá estamos para continuar a lutar pelas nossas vidas, pelo nosso direito à vida independente, sempre com a nossa participação, porque nada sobre nós se pode fazer sem nós.

Intervenção no 25º Encontro Nacional de Pessoas com Deficiência – Lutar pela inclusão, cumprir a Constituição, promovido pela Confederação Nacional dos Organismos de Deficientes, que teve lugar em Palmela a 5 de Outubro de 2018.

Sobre o/a autor(a)

Arquiteto. Ativista do Movimento (d)Eficientes Indignados
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