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Estará a Turquia a levar a melhor na Síria?

Os mais recentes acontecimentos no norte da Síria sugerem que um novo jogo de relações entre as nações vizinhas pode estar a ser montado.

Os mais recentes acontecimentos no norte da Síria sugerem que um novo jogo de relações entre as nações vizinhas pode estar a ser montado.

Esta é a prova de que alguns especialistas estavam errados em relação à ideia de que a pressão sobre os curdos iria diminiuir em face do golpe de Estado e do processo de purgas internas que regime de Erdogan está a levar a cabo para “limpar” o país de opositores.

A diplomacia turca não tem estado parada desde que, há mais de dois meses, os curdos sitiaram Manbij, cidade estratégica próxima da fronteira entre a Síria e a Turquia. Isto apesar do silêncio quando eles atravessaram a barragem de Tishrin sobre rio o Eufrates, em dezembro do ano passado.

Após o anúncio da tomada da cidade pelas Forças Democráticas Sírias (SDF), que integram as milícias curdas (YPG e YPJ) e várias milícias árabes que se opõem ao regime e aos grupos extremistas, a aviação do regime de Bashar al-Assad atacou pela primeira vez bairros curdos em Hasakah, no nordeste da Síria.

Estes ataques causaram a morte de pelo menos 19 civis e centenas de deslocados e tiveram uma resposta musculada por parte do YPG, que se apoderou de diversas posições do regime na cidade.

O regime de Assad, aliado do Irão, pode estar aliar-se agora à Turquia, que tem vindo a dar passos importantes de aproximação à Rússia, outro aliado chave do regime sírio.

Não era espectável uma ação violenta por parte de Assad contra os curdos, que não sendo aliados, também não são inimigos declarados e têm, aliás, o daesh e outros grupos extremistas como inimigos comuns.

No entanto, as autoridades políticas do Rojava têm sugerido que recentes encontros entre dirigentes políticos do Irão e da Turquia estão na base desta provocação. O regime de Assad, aliado do Irão, pode estar aliar-se agora à Turquia, que tem vindo a dar passos importantes de aproximação à Rússia, outro aliado chave do regime sírio.

Um comunicado bizarro emitido pelo exército sírio parece dar sinal disso, dada a semelhança com o discurso de Ancara (“as forças de segurança curdas são a ala militar do PKK”).

Se a Síria se aproximar dos seus vizinhos, isso pode significar que se avizinham dificuldades acrescidas para o Rojava. O regime de Assad não reconhece o estatuto de autonomia na região e opõe-se claramente ao projeto federalista dos curdos. Já a Turquia, que não vê distinção entre os “terroristas” do PKK e o YPG e que tem impedido a participação dos partidos pró-curdos nas conversações de Genebra para a paz, não desiste de tentar evitar a fusão territorial dos três cantões do Rojava, que está agora apenas a cerca 47 kms de se concretizar.

Mas a tensão entre a Rússia e a Turquia e entre esta e a Síria pode já ter atingido um ponto de rutura, demasiado profundo para que os três países se entendam em relação àquilo que querem para a região. A diplomacia turca tem um longo caminho pela frente para apagar o erro do exército, que abateu um caça russo perto da fronteira. E quanto à Síria, não haverá entendimento enquanto a Turquia se achar no direito de transpor a fronteira para perseguir grupos combatentes como o daesh ou o YPG.

O assasinato do comandante das SDF Abdulsettar Al-Cadiri por parte de snipers dos serviços secretos da Turquia, e novos  ataques às posições do YPG perto de Jarabulus, junto à fronteira, contribuem para o aumento das tensões e são uma tentativa clara de espalhar o caos na região.

Mais recentemente, o secretário de estado norte-americano, John Kerry, ameaçou retirar o apoio às SDF se o YPG não se retirasse para leste do Eufrates (a “linha vermelha” da Turquia para não invadir a Síria). Este recuo da administração Obama, vamos já ver porquê, só tem duas possíveis explicações: Inabilidade completa para assuntos internacionais ou uma política pró-caos cujo objetivo é dividir para reinar no Médio Oriente.

A Turquia promoveu, enviando tanques e soldados, uma ofensiva militar do “exército livre sírio” (em português de gente, as milícias sunitas não menos fanáticas que o daesh) para a tomada da cidade de Jarabulus. O objetivo é instituir uma zona tampão ao longo da fronteira que impeça a presença da auto-administração curda. A cidade foi tomada praticamente sem resistência, permitindo-se a fuga dos jihadistas para Raqqa.

Os EUA apoiaram a ofensiva com a aviação militar. Um recuo face à política de só apoiar as SDF, que eles passaram a aplicar quando se tornou evidente o fracasso do “exercito livre sírio” contra o daesh e a radicalização de quase todos os grupos armados sunitas de oposição ao regime de Assad.

Com este recuo disparatado, os EUA não só servem os objetivos políticos do regime de Erdogan, como espalham o caos e dificultam o processo de paz e democratização do país para o qual deveriam estar a contribuir.

Não me parece que eles não saibam o que estão a fazer. O objetivo é destronar um regime xiita, próximo do Irão, e se tal não for possível (como até hoje não foi), pelo menos dividir eternamente o país entre grupos armados sunitas e xiitas. Deste modo, o Irão não terá toda a influência sobre a Síria, e equilibram-se a Arábia Saudita e o Irão, sem que nenhuma das potências regionais tenha mais influência que a outra.

Dito isto, parece que os curdos estão a ser encostados à parede por todos os lados. Já nem os EUA lhes garantem apoio sem que isso dependa de condições externas.

Mas nem por isso eles se deixam levar por agendas estrangeiras. Irredutível, um porta-voz do YPG disse-o com todas as letras: “Não nos vamos retirar para leste do Eufrates! Estamos no nosso país e não nos retiraremos a pedido da Turquia ou de quem quer que seja!”.

Aproximam-se novas e perigosas fases nesta guerra que parece não ter fim.

Sobre o/a autor(a)

Estudante de Direito. Dirigente do Bloco de Esquerda da Maia.
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