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Escola virtual, chumbos reais?

Quando uma única sala de aula se divide em 30 salas de 30 casas diferentes, o contexto socioeconómico dos alunos passa a ser o principal facilitador ou obstáculo das aprendizagens.

Ainda ninguém sabe se as aulas presenciais vão continuar suspensas até ao final do ano. Essa decisão obedece a critérios que escapam à normalidade do calendário escolar, o que confirma que este será um ano atípico para todos os estudantes. A questão é se conseguimos evitar que este ano se transforme numa sentença de insucesso escolar para muitos deles. É o risco de avançar para o terceiro período com ensino à distância. Mas esse cenário existe e não está ao nosso alcance descartá-lo, apenas prepará-lo com cuidado.

Ainda que não estivéssemos a enfrentar uma pandemia, que não existisse confinamento familiar nem crise social, o ponto de partida para este debate seria sempre igual: é impossível reproduzir a experiência escolar em ensino à distância. Os exemplos da telescola que tivemos no passado não dispensavam a presença de um professor e os exemplos de e-learning do presente estão feitos para ciclos muito mais avançados. Ninguém aprende a ler e a escrever à distância.

Além disso, é a presença física na escola que permite minimizar as desigualdades entre os alunos e proporcionar-lhes recursos semelhantes. Quando uma única sala de aula se divide em 30 salas de 30 casas diferentes, o contexto socioeconómico dos alunos passa a ser o principal facilitador ou obstáculo das aprendizagens. Quem divide um computador com toda a família, quem não tem nenhum, quem não tem familiares com estudos, quem tem frio, fome ou, simplesmente, não tem sossego tem agora uma desvantagem ainda maior.

Mas, ao contrário do que pensam os liberais e conservadores, a escola nunca combateu as desigualdades dando “oportunidades iguais” a crianças de contextos diferentes. Como não vai conseguir fazê-lo agora apenas distribuindo material informático para lavar as mãos do futuro dos 99% dos alunos do Agrupamento da Trafaria que não têm computadores ligados à internet em casa. Podem até pôr lá o computador, mas o tal elevador social nunca foi instalado.

Por isso, o primeiro passo é definir prioridades: de que é que não podemos abdicar? Recentemente, um grupo de constitucionalistas veio lembrar que o princípio da igualdade tem de ser preservado pela modalidade do ensino à distância. Comecemos então por esse critério: que modelo de ensino à distância dá mais garantias de igualdade e universalidade no direito à educação?

Até ver, a telescola é a melhor opção. Não descarta a distribuição de computadores, mas é a ferramenta que a maioria das casas já têm disponível. Claro que tem limitações: os conteúdos devem ser transmitidos em canal aberto e por períodos curtos de tempo para cada ano de escolaridade, e sempre em articulação com materiais e exercícios online. Mas também esses devem estar concentrados numa plataforma simples, criada pelo Ministério da Educação. É preciso evitar a atomização do sistema de ensino.

A telescola ajuda na universalidade, mas não resolve o principal obstáculo à igualdade. O terceiro período é um risco porque será necessário avaliar e classificar alunos que tiveram a sua primeira experiência de ensino à distância durante um período trágico, provocado por uma pandemia. Como se avalia estes alunos com justiça?

A resposta corajosa é admitir que a prioridade deste ano não é a classificação. A escola tem tarefas mais importantes para desempenhar nesta pandemia, a começar pelo acompanhamento social e pedagógico. As aulas à distância devem servir para consolidar a matéria e manter estímulos de aprendizagem. Tanto na avaliação final como nos exames nacionais, é um erro avaliar e classificar “matéria nova” lecionada à distância.

Cabe-nos evitar que esta tragédia leve os alunos mais vulneráveis à retenção e prejudique o seu percurso educativo para sempre. Bem sabemos que há promessas difíceis de cumprir, mas isso seria o contrário de “vai ficar tudo bem”.

Artigo publicado no jornal “I” a 2 de abril de 2020

Sobre o/a autor(a)

Deputada e dirigente do Bloco de Esquerda, licenciada em relações internacionais.
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