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Entre verdades e mentiras: hippies, extrema-direita e a covid

A ideia de que a pandemia não existe, que o mundo é dominado por uma rede de pedófilos que roubam sangue às crianças para injectarem em si próprios e ficarem mais jovens, tem não só agregados milhões de adeptos como tem impulsionando a corrida eleitoral a favor de Donald Trump.

Será possível imaginar uma intersecção entre hippies, terraplanistas, anti-vaxxers e nazis? Em tempos de pandemia, estes aliados aparentemente improváveis parecem ter encontrado esse lugar comum em teorias de conspiração. A negação do vírus, que varia desde a ideia da existência de um conluio comunista chinês, até uma suposta tentativa de controlo mundial por figuras públicas como George Soros, ou até à Bill Gates Foundation, são apenas alguns exemplos das narrativas mais comuns.

Se, por um lado, alguns parecem absurdos, outros mais razoáveis, a realidade é que estas ideias têm impulsionado discursos da extrema-direita em vários lugares do mundo. Em Portugal, no dia 20 de setembro, ocorreram manifestações nas cidades do Porto, Coimbra e Lisboa, convocadas através de redes sociais, que tomaram as ruas com placas a defender o fim da “farsa” da covid e a afirmar que vacinas matam. A manifestação em Coimbra decorreu sem o uso de máscaras e as devidas medidas de segurança e distanciamento social.

Nos EUA, discursos contra movimentos antifascistas e o Black Lives Matter se expandem na suposta tentativa de liberar o mundo daqueles que nos consideram parte de uma conspiração que visa espalhar o caos pelo planeta, para depois implementar uma ditadura. Não há dúvidas que o sucesso dessas teorias reside na sua capacidade de misturar elementos legítimos, ou de suspeita natural – como a denúncia dos lucros imorais da indústria farmacêutica –, com suposições perigosas como o movimento anti-vacinas, que apela a que se deixe de tomar vacinas por supostamente só servirem para adoecer as pessoas, ou as controlar.

A filósofa Hannah Arendt, em seu conhecido livro As Origens do Totalitarismo, originalmente publicado em 1951, já alertava que ideologias totalitárias como o fascismo se baseavam em teorias de conspiração. Sua abordagem aristotélica entendia a verdadeira política como participação cidadã. Percebia que o discurso da conspiração apresentava uma tentativa de eliminação da consciência política e, por consequência, do debate público.

O conflito social – sobre, por exemplo, as medidas a tomar em relação à pandemia e a distribuição social dos custos que as mesmas acarretam – é externalizado num inimigo imaginário. Este fenómeno torna os seus seguidores, mesmo que estes se achem anti sistémicos, em seres acríticos e facilmente cooptáveis.

Neste ano, a mais recente e influente teoria da conspiração, a QAnon, terá um papel importante nas eleições dos Estados Unidos. A ideia de que a pandemia não existe, que o mundo é dominado por uma rede de pedófilos que roubam sangue às crianças para injetarem em si próprios e ficarem mais jovens, tem não só agregados milhões de adeptos como tem impulsionando a corrida eleitoral a favor de Donald Trump e a suposta luta contra o “Estado Profundo”. O Presidente dos EUA ainda dá credibilidade pública à seita e defende que as pessoas que defendem essa teoria só querem o bem-estar do país

A repercussão internacional que encontra cada vez mais espaço na América Latina, mas também em alguns países da Europa (como a Alemanha), é responsável pela difusão de um grande número de notícias falsas, com um crescimento significativo em grupos de redes sociais como Facebook e WhatsApp, onde se expandem sem nenhum respaldo científico ou jurídico.

Assim, tal como Trump e Bolsonaro, os ”anons” dizem que falsas são as notícias difundidas pelos media e a única fonte confiável são as notícias partilhadas por suas redes sociais, num momento em que estas estão a substituir cada vez mais os canais tradicionais de informação.

Essas narrativas ganham espaço na medida em que cada vez mais os canais de debate público são monopolizados e controlados nas mãos de um pequeno grupo de acionistas privados, gerando uma desconfiança legítima de grande parcela da população. Os líderes populistas incentivam estes tipos de teorias precisamente porque é de seu interesse: não há dúvidas que artifícios conspiratórios sempre existiram, mas a tecnologia tem sido um aliado importante na sua difusão hoje.

Só uma análise estrutural dos problemas, que encontre uma resposta coletiva de participação política, pode fazer frente a estas teorias e nos apontar novos caminhos. A deslegitimação dos governos e das democracias liberais encontra lugar na ausência de uma base ideológica sólida. A falta de resposta das esquerdas parlamentares e o discurso burocratizado, ainda pouco acessível à grande parte da classe trabalhadora, que poderia fazer frente a este tipo de narrativas, tem-se esvaziado progressivamente no espaço público e tornado o espaço virtual cada vez mais um lugar suspeito.

Artigo publicado em publico.pt a 22 de setembro de 2020

Sobre o/a autor(a)

Doutoranda em filosofia política na Faculdade de Letras da Universidade Coimbra. Investigadora no Instituto de Estudos Filosóficos – IEF – UC
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