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Entre Duas Margens

Desenhar uma política pública para a cultura não tem, obrigatoriamente, de significar uma cultura de eventos massiva, que desvirtua a cidade.

Faz alguns dias que passeava no Cais de Gaia quando, de repente, me vejo próximo de uma conversa entre vários comerciantes locais. A minha curiosidade fez-me dar mais alguns passos e aproximar-me. Queixavam-se da falta de clientes nas suas lojas ao fim-de-semana porque a rua estava constantemente interdita: ora uma corrida de uma qualquer marca de roupa desportiva, ora um circuito de bicicletas patrocinado por uma multinacional, sem nunca esquecer o exército de “comboios turísticos” que enchem a marginal de trânsito.

Este pequeno episódio talvez sirva de exemplo para o universo de contradições que este modelo de desenvolvimento dos centros históricos tem vindo a brotar. A principal atividade que, teoricamente, mais apoiaria estes comerciantes tornou-se um entrave ao seu próprio negócio. É este o nível do paradigma (e não entendam isto como uma espécie de preconceito em relação a eventos desportivos ou turísticos: já participei em vários, gosto de visitar outras culturas e sou até crítico da falta de mais políticas públicas, seja na área do desporto e da saúde seja na temática da gestão do património cultural).

Na Afurada, as varandas com a roupa interior a secar viraram chamariz para as melhores fotos que ocupam capas de revistas gourmet e lifestyle. Ao lado dessas mesmas varandas fancy, nasceu uma marina para veleiros e iates. Eu, por exemplo, preferia que resolvessem o problema das pequenas embarcações da pesca artesanal que ainda resistem à custa da coragem e determinação de muitos pescadores e peixeiras, nesta pequena vila na foz do Douro.

A benevolência com que vários executivos camarários permitem este tipo de exploração por parte de grandes investidores privados cria problemas de vária ordem. Geograficamente, se corrermos o rio a partir da sua foz até ao Alto Douro (Vila Nova de Gaia, Porto, Gondomar, Peso da Régua, entre outras) perdemos de vista a quantidade de infraestruturas turísticas, verdadeiros monopólios que tomaram conta de um tipo específico de negócio e, mais preocupante, tomaram conta do rio. Ao mesmo tempo, podermos outro tipo de atividades económicas e sociais neste grande corredor aquático que rompe parte da zona norte do país e nasce ainda no Estado Espanhol.

Agora, no início de setembro, vamos ter o evento “Red Bull Air Race”. A ameaça que este tipo de corridas de avionetas traz à segurança de todos e todas mas também ao próprio património histórico que são as zonas ribeirinhas faz-nos pensar se é assim que queremos mesmo defender o “Douro”. Desenhar uma política pública para a cultura não tem, obrigatoriamente, de significar uma cultura de eventos massiva, que desvirtua a cidade. Não temos de tornar o Douro em mais uma marca da moda, ao invés devemos voltar a torna-lo um Rio com R grande, tal como outrora foi.

Isto não é um guião para um filme de ficção. É um filme de ficção que se tornou realidade. Entre duas margens é como se encontram os últimos metros do Douro. São elas a euforia do turismo e a especulação imobiliária.

Artigo publicado no jornal “Vivacidade” de agosto de 2017

Sobre o/a autor(a)

Museólogo. Investigador no Centro de Estudos Transdisciplinares “Cultura, Espaço e Memória”, Universidade do Porto
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