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Em nome de Deus te mato - O fundamentalismo
No dia 7 de janeiro de 2015 dois jovens franceses de religião islâmica na sua interpretação fundamentalista assassinaram 12 outros franceses na redação da revista de humor CHARLIE HEBDO editada em Paris. Declararam ter matado por razões religiosas para vingar o fundador, no século 7, da religião islâmica, Muhâmade, que consideraram ofendido por caricaturas publicadas na revista. No dia seguinte outro jovem francês também de religião islâmica fundamentalista e ligado aos anteriores assassinou quatro franceses numa loja de bens alimentares e na véspera uma agente de polícia, invocando a mesma justificação. A polícia interveio e, na impossibilidade de os capturar vivos, foram mortos. Há indícios de os três jovens terem sido doutrinados no fundamentalismo islâmico numa mesquita de Paris das muitas edificadas e providas com pregadores fundamentalistas por todo o mundo islâmico e em outros países onde há significativa imigração de pessoas de religião islâmica. Essas mesquitas têm sido financiadas com dinheiro proveniente da Arábia Saudita e dos seus satélites políticos, os emiratos árabes do Golfo Pérsico.
A corrente religiosa fundamentalista islâmica surgiu no fim do século 18. Foi teorizada e pregada na Península Arábica, que então integrava o império turco otomano, pelo clérigo Muhâmade Wabi. Defendeu que os árabes só poderão recuperar o antigo poder e as riqueza e influência política e religiosa se regressarem às práticas religiosas e políticas seguidas no tempo de Muhâmade, o profeta criador da religião islâmica, e dos califas que lhe sucederam no poder e governaram todos os seguidores dessa religião (a Umma), concentrando na mesma pessoa o poder religioso e o poder político. Esse poder mantinha submissas aos califas todas as pessoas dos territórios por eles dominados (desde os Pirinéus até ao oriente da Pérsia), impondo comportamentos fixados em código extenso e minucioso de acordo com interpretação literal do alcorão (o livro religioso) e da tradição religiosa sunita. O chefe da tribo do então pequeno oásis de Riade na Península da Arábia, Muhâmade Saude, seguiu essa interpretação fundamentalista do islão e, quando morreu o clérigo Muhâmade Wabi, declarou-se seu sucessor, assumindo na sua tribo o poder religioso juntamente com a chefia da tribo e concebendo a estratégia de os seus descendentes um dia assumirem, como califas, todo o poder religioso e político sobre os muçulmanos sunitas, refundando o califado derrubado pelos mongois no século 13. Para isso foram os chefes tribais Saude pela força e negociação estendendo o seu poder até à cidade de Meca com o objetivo de legitimar religiosamente a pretensão.
A família Saude, depois da Primeira Grande Guerra, assumiu a chefia do reino da Arábia Saudita pela mão dos ingleses, que aí combateram os turcos do império otomano. Deram os ingleses independência à Arábia Saudita, mas reservaram o petróleo. Pareceu aos reis Saude que estava estabelecido o primeiro degrau para o seu objetivo. Quando, pelos fins da década de 1960 e princípio da de 1970, já sob a influência política e militar dos EUA a Arábia Saudita assumiu o controlo do seu petróleo e beneficiou de forte subida do preço com acumulação de grande riqueza em dinheiro, entendeu passar a degrau seguinte, apoiando a construção de mesquitas em todos os países islâmicos e também em outros países com significativa entrada de imigrantes de religião islâmica, como Paris, Londres, Amesterdão e diversas cidades americanas, provendo-as com pregadores fundamentalistas.
O fundamentalismo islâmico impõe aplicação rigorosa e literal do alcorão, da antiga tradição religiosa e da derivada charia que estabelece pena de morte para quem, no entender dos fundamentalistas, desrespeitar o profeta Muhâmade e não cumprir muitos outros preceitos religiosos. A revista Charlie Hebdo, na opinião dos fundamentalistas islâmicos, infringiu esse preceito ao publicar caricaturas do profeta. Por isso assassinaram quase toda a sua redação. Os fundamentalistas islâmicos consideram-se no direito de castigar, incluindo com a morte, quem contrariar os seus dogmas religiosos, mesmo não sendo muçulmano. Esta interpretação fundamentalista do islamismo é preocupante recuo civilizacional a tempos antigos. Também os cristãos na Europa se mataram por seguirem diferentes interpretações e práticas religiosas. Nos séculos 12 e 13 os seguidores do cristianismo cátaro no sul da França foram sistematicamente mortos em guerra religiosa e depois pelo chamado Santo Ofício até completa exterminação. No século 16 e 17 os católicos e os protestantes mataram-se por diferenças religiosas. Na Espanha e em Portugal, desde o fim do século 15 ao do século 18, os que seguiam práticas religiosas não conformes com o cristianismo católico eram perseguidos pelo “Santo Ofício” e em muitos casos condenados à morte pelo fogo.
Numa sociedade organizada segundo princípios de respeito mútuo, de tolerância e de solidariedade indispensáveis a cimentar a sua coesão não é tolerável impor convicções religiosas, filosóficas, estéticas ou outras, porque as convicções são assunto pessoal de cada indivíduo. Não se pode, em sociedade racionalmente organizada, deixar de respeitar a liberdade de consciência, de religião ou crença e de opinião de cada cidadão e de lhe reconhecer o direito de livre e pacificamente exprimir e defender as suas convicções. Essas convicções correspondem à sua identidade pessoal, não podendo ser modificadas senão por livre e racional diálogo, nunca matando, ou impondo por violência comportamentos de aparente conformação que serão necessariamente dissimulados. A revista Charlie Hebdo publicou sob a forma de desenhos humorísticos a opinião dos seus jornalistas sobre o que foi por eles considerado prática inaceitável dos seguidores do fundamentalismo islâmico. Foi ato legítimo à luz da lei francesa e até da antiga prática cultural já defendida, há mais de 2000 anos, na civilização clássica: “ridendo castigat mores” (critica com ironia). Mas os fundamentalistas de todas as cores, que sempre se julgam donos de verdades eternas e imutáveis, não aceitam ironias. Estes, os fundamentalistas islâmicos, mataram a redação da revista Charlie Hebdo, querendo impor pela forma mais radical, matando em nome de Deus, a sua interpretação da religião islâmica. É interpretação bárbara, ultrapassada pela história e não admissível pelos princípios da Carta das Nações Unidas e da sua Declaração dos Direitos do Homem.
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