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Elogio da exclusividade

A ideia de que exercer uma profissão liberal ao mesmo tempo que se é deputado é uma garantia de liberdade para o deputado, que lhe permite não ser um obediente funcionário, é estranha e sem fundamento.

Rui Rio, o mesmo que anunciou ao país um “banho de ética”, mostrou-se muito preocupado com “a fraquíssima capacidade de recrutar os melhores” para a vida política e daí tirou a consequência de que há que moderar o regime de incompatibilidades no exercício de cargos políticos. Não “apertar a malha” demasiado, para não afugentar “os melhores” – dizem os críticos de incompatibilidades acrescidas para o exercício de funções políticas representativas. O raciocínio é conhecido: para eles, o que desincentiva “os melhores” de “ir para a política” é o crescimento das exigências legais para o exercício de funções representativas. Sendo outras as circunstâncias, foi esse curiosamente o argumento usado para justificar que António Domingues não fosse obrigado a apresentar a sua declaração de rendimentos ao Tribunal Constitucional – afinal de contas ele era o melhor e trazer o melhor para um alto cargo público justificava um regime de exceção…

Quem são os melhores? Um reputado médico ou uma gestora de sucesso são por definição melhores do que um ativista pelos direitos humanos ou uma enfermeira para o desempenho de funções de deputado/a? Que critério usamos? Eu sugiro um: o de que os melhores são os que, pela sua trajetória e pela sua experiência de vida, dão mais garantias de plena dedicação à causa pública. Podem ser médicos, gestoras, ativistas ou enfermeiras. Mas o que os torna gente boa para a responsabilidade política não é a perícia técnica nem o prestígio curricular, é a entrega ao bem comum. Gente que não hesita em pôr o interesse público acima dos seus interesses pessoais, gente para quem a política não é nunca uma carreira, mas um campo de escolhas e de militância por elas. Suponho que se chama a isto ética republicana, mas talvez seja desconhecimento meu.

Dizem os críticos de um regime de incompatibilidades exigente para o desempenho de funções políticas representativas que reservar o exercício de cargos políticos a quem dá provas de dedicação plena à causa pública, fazendo-lhe corresponder um desempenho em exclusividade, é contribuir para a mediocratização da política. Se isso fosse verdade, então um regime de compatibilidade generoso como o que temos hoje faria abundar os tais melhores naqueles cargos. A verdade é que não é assim. Não é portanto a exclusividade que arrasta consigo a mediocratização. Arrisco dizer que é justamente ao contrário. Ter incondicional disponibilidade para mergulhar no mundo da vida, conhecer os problemas sociais e estudar as suas soluções sem os filtros do interesse particular qualifica o desempenho político representativo ao mesmo tempo que permite aos cidadãos em geral uma exigência muito superior para com os seus representantes em cada momento.

A ideia de que exercer uma profissão liberal ao mesmo tempo que se é deputado é uma garantia de liberdade para o deputado, que lhe permite não ser um obediente funcionário, é estranha e sem fundamento.

No século XIX, dizia-se que os pobres e as mulheres que não tinham condições de liberdade material e intelectual para captar a complexidade dos problemas da sociedade. E por isso lhes era vedado votar. Não conheciam a vida, invocava-se. O argumento que hoje usam os críticos da exclusividade do exercício da responsabilidade de deputado brota da mesma matriz: quem exerce só a função de deputado torna-se funcionário e perde a riqueza da vida e a liberdade de escolher e decidir por si – é esse o argumento. Como se conhecer a vida e ter espírito insubmisso fosse apanágio de uma certa condição profissional. Não é. A vida conhece-se a partir não apenas da profissão, mas do mergulho incondicional nas vidas de que ela se faz e nos desafios que elas nos dirigem, da aprendizagem com tudo o que essas vidas nos ensinam, do confronto entre isso que vemos e aprendemos e o que os preconceitos e os filtros sociais nos impõem.

Perde um profissional liberal em ser deputado em exclusividade? Perderá certamente em rendimento, mas ganhará em independência. E ganhará a democracia em clareza e transparência.

Artigo publicado na revista “Visão” nº 1.300 de 1 de fevereiro de 2018

Sobre o/a autor(a)

Professor Universitário. Dirigente do Bloco de Esquerda
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