Está aqui

Elas

O estatuto de cuidador é a nossa menor dívida. Que se comece por essa, e já. Até quando pode durar um fingimento?

Ela é uma pessoa fascinante. Sagaz, inteligente, linda, doce e lutadora. Não tem protecção, é toda ela quando se apresenta. Não consegue disfarçar a amargura que lhe vai na alma e não pede desculpas por isso. Esta semana partilhou várias fotografias nas redes sociais vindas directamente do seu “baú das recordações”. Fotografias de jogos de futebol, de namoro, de sedução, do dia do casamento num dia 13 de 1981. O olhar é o mesmo, a beleza continua lá toda, mas desse amor resta, sobretudo, a memória dela, que ela quis partilhar connosco esta semana. Quando a conheci, há uns dois anos e meio, ele ainda vinha com ela aos eventos públicos. Agora já não vem. Ela vem, só aparentemente, sozinha, porque ele vem sempre com ela. Ele é a parte total dos dias dela. Ela carrega o amor, como só ela sabe, o cansaço, a tristeza, e agora quase toda a memória do que foi a história deles. Nos olhos dela avista-se tudo como se fosse uma manhã límpida. Ela é do Porto.

Ela é uma força da natureza, é profunda, faz-se notar e ouvir onde quer que entre. Não quer parecer doce, embora até o seja lá por dentro. Não baixa os braços e não é de sorriso fácil. É teimosa e teimosamente bonita. Aponta as mágoas que guarda a direito, sem pedir permissão, a todas as pessoas que ela sabe que não lhe deviam ter falhado e falharam. A todos e todas nós que, sim, falhámos e continuamos a falhar. Ela fez-se super-mulher para, primeiro entender, e depois cuidar da irmã. Ganhou filhos que não eram seus. Perdeu ilusões enquanto ia ganhando força. Não se mostra muito, mas percebe-se do tanto que guarda lá dentro. Ela não esquece a perda e parece estar-lhe marcada na vida a tarefa de cuidar. Agora é a vez da mãe. E ela aguenta e faz-nos sempre crer que é capaz de aguentar tudo. Ela é do Barreiro.

Ela é uma romântica e, felizmente, mantém essa ideia que têm as pessoas românticas: a ideia de que vai salvar o mundo. Toda a gente sabe que pode contar com ela para o que seja. É tímida até à medula e o que vemos é uma fortaleza. É uma doçura, é sonhadora e podia ser recuperadora de sonhos a tempo inteiro, tal é a confiança que nela têm para carregar também os seus sonhos. Ela é a personificação das lutas que todos travam todos os dias. É honesta, corajosa, de olhar sincero e profundo. Tem um sorriso que abarca o mundo, é apaixonada e isso é parte da beleza dela. Só vai abaixo em privado. Agarra no megafone como se o tivesse feito toda a vida. É a voz que muitos não têm e faz-se ouvir com uma força humilde que desarma. Ela cuida das avós e sabe-se lá de quem mais. Às vezes dá a sensação que cuida de toda a gente. Ela é do Seixal.

Elas e eles são mais de 800 mil pessoas em Portugal. Têm um dia dedicado, 5 de Novembro, mas cuidam todos os dias do ano. Elas e eles continuam a ver-lhes negados direitos todos os dias. Agora já ninguém pode dizer que não sabe que existem, porque elas e eles se organizaram e se mostraram. A dívida que temos para com elas e com eles é enorme. Substituem as funções do Estado, cuidam dos seus e cuidam de nós sociedade. Pedem uma coisa tão simples como um estatuto. Dizem do lado do governo que custa dinheiro, mas não se fazem nunca as contas ao dinheiro que nos poupam. O estatuto de cuidador é a nossa menor dívida. Que se comece por essa, e já. Até quando pode durar um fingimento?

Artigo publicado no “Diário de Notícias” a 11 de novembro de 2018

Sobre o/a autor(a)

Eurodeputada, dirigente do Bloco de Esquerda, socióloga.
Comentários (1)