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Educação antirracista: rumo à escola imaginada

Os efeitos da pandemia penalizaram desproporcionalmente as/os estudantes provenientes das comunidades racializadas. Uma avaliação adequada da situação deve ter em conta não só os efeitos das desigualdades socioeconómicas, como a discriminação com base na pertença étnico-racial.

Imagine uma escola que garante equidade no acesso à educação a todas/os as/os alunas/os. Uma escola que promove explicitamente a inclusão, que reconhece, valoriza e acolhe as diversidades culturais e de pertença étnico-racial que existem na comunidade escolar.

Uma escola plural empenhada em combater os preconceitos e os estereótipos que discriminam as/os estudantes provenientes das comunidades ciganas, africanas, afrodescendentes e migrantes. Uma escola apostada em lutar contra as desigualdades que afetam essas/es estudantes e contra o insucesso e abandono escolar que daí resulta.

Imagine uma escola consciente do seu papel na comunidade e em diálogo aberto com as organizações que a representam. Uma escola que dá sentido de pertença às/aos alunas/os e potencia as aprendizagens, onde todas/os têm a possibilidade de construir percursos escolares de sucesso.

Uma escola alinhada com a pluralidade que existe na produção de conhecimento, comprometida com a descolonização do conhecimento e da pedagogia. Uma escola que valoriza e ensina os contributos das civilizações não europeias para o desenvolvimento científico e tecnológico, social e cultural nos currículos e manuais escolares.

Imagine uma escola com um corpo docente e dirigente diverso, uma escola que não segrega alunas/os com base na sua pertença étnico-racial, que não empurra estudantes racializadas/os para vias profissionalizantes, que conta com mediadoras/es socioculturais como elo de ligação à comunidade, que inclui nos currículos e materiais escolares conteúdos e autoras/es que contrariam a visão eurocêntrica prevalecente na sociedade.

Imagine uma escola ativamente antirracista, uma escola do século XXI.

Esta escola, lamentavelmente, ainda não existe em Portugal.

 

A realidade é que a situação escolar das/os estudantes provenientes das comunidades ciganas, africanas, afrodescendentes e migrantes é reveladora de processos de exclusão e segregação com base nas características étnico-raciais, que colocam grandes obstáculos ao acesso à educação com qualidade e à construção de projetos de vida que privilegiem a formação académica. A escola, enquanto território de produção e reprodução de conhecimento e de poder, reforça de forma decisiva o sistema de perpetuação da desigualdade e exclusão.

São diversos os estudos académicos e os relatórios produzidos por organizações internacionais que revelam a existência de processos de exclusão e discriminação com base nas características étnico-raciais no setor educativo em Portugal.

Os dados são inequívocos e demonstram que persistem, nas escolas portuguesas, práticas de segregação escolar, como a existência de turmas exclusivamente constituídas por alunas e alunos ciganos, africanos, afrodescendentes ou migrantes. As/os alunas/os provenientes destas comunidades são sujeitas/os a taxas mais elevadas de retenção no ensino básico e secundário e maior encaminhamento para cursos profissionais, o que condiciona a frequência do ensino superior, ao qual estas alunas e estes alunos acedem cinco vezes menos do que os seus pares de nacionalidade portuguesa. Estes resultados mantêm-se mesmo quando se controlam os efeitos da classe social.

No que se refere às crianças ciganas, os níveis de abandono escolar são extraordinariamente elevados e os resultados ficam muito aquém dos objetivos definidos na Estratégia Nacional para a Integração das Comunidades Ciganas. Segundo dados da Comissão Europeia contra o Racismo e a Intolerância do Conselho da Europa (ECRI), 90% abandona a escola antes de concluir o ensino obrigatório (frequentemente entre os 10 e 12 anos de idade), ao passo que a taxa de abandono é de 14% para a população geral.

A isto acresce a quase total ausência de docentes e dirigentes escolares pertencentes a grupos racializados e a inexistência de programas de ensino multilingue que incluam as línguas das comunidades de origem, bem como a persistência de uma visão eurocêntrica nos currículos e nos manuais escolares, que frequentemente perpetua estereótipos e invisibiliza o conhecimento produzido e reproduzido por sujeitos racializados.

Estas práticas criam discrepâncias significativas no desempenho escolar entre crianças e jovens portuguesas ciganas, africanas e afrodescendentes, ou descendentes de imigrantes.

A situação de pandemia veio expor e agravar as vulnerabilidades que já estavam colocadas. Muitas/os estudantes ficaram sem possibilidade de acompanhar as aulas à distância, tiveram muitas dificuldades na realização das tarefas escolares, por falta de computadores, acesso à internet ou pelas condições precárias dos alojamentos onde vivem com as suas famílias.

Os efeitos da pandemia penalizaram desproporcionalmente as/os estudantes provenientes das comunidades racializadas. Isto revela-nos que uma avaliação adequada da situação deve ter em conta não só os efeitos das desigualdades socioeconómicas, como a discriminação com base na pertença étnico-racial.

A correção de todas as desigualdades que existem e a promoção de uma educação de qualidade, que efetivamente não deixe ninguém para trás, requer que o combate ao racismo e à discriminação seja colocado no centro da política educativa.

Este é um trabalho de todos os agentes educativos, mas cabe naturalmente ao Estado a responsabilidade principal e insubstituível de corrigir estes problemas através da implementação de políticas públicas.

Uma parte substantiva do diagnóstico e dos possíveis caminhos para a resolução destas desigualdades encontra-se já em diversos relatórios e recomendações quer de organizações internacionais, quer no âmbito do próprio parlamento nacional, quer ainda nas reivindicações das organizações antirracistas e representativas das comunidades racializadas e migrantes.

O Bloco de Esquerda apresentou várias medidas no seu programa eleitoral nas últimas legislativas, entre as quais o fim das turmas e escolas segregadas e do desproporcional encaminhamento para vias profissionalizantes, a contratação de mediadoras/es socioculturais, a oferta de ensino multilingue e a criação de um contingente especial para candidatas/os das comunidades racializadas para acesso ao ensino superior. Já nesta legislatura, em março deste ano, propôs a realização de um estudo abrangente sobre as desigualdades de base étnico-racial existentes em Portugal em diversos domínios, incluindo a educação, que sirva de base à implementação de uma estratégia nacional destinada a corrigi-las. Uma proposta que foi aprovada por unanimidade na Assembleia da República, o mesmo acontecendo com algumas propostas de combate ao racismo apresentadas por outras forças políticas.

Também o “Relatório sobre Racismo, Xenofobia e Discriminação Étnico-racial em Portugal elaborado em 2019 no âmbito da subcomissão parlamentar de Igualdade e não Discriminação da Assembleia da República, cuja relatora foi a então deputada Catarina Marcelino, inclui várias recomendações para combater a discriminação étnico-racial na área da educação.

Mais recentemente, no dia 6 de novembro deste ano, o Conselho Nacional de Educação divulgou um documento sobre cidadania e educação antirracista, que contém 12 importantes recomendações para o combate ao racismo na educação, em linha com as principais preocupações e reivindicações das organizações antirracistas.

Não obstante ser possível (e até desejável) aprofundar o conhecimento sobre a discriminação e as desigualdades com base na pertença étnico-racial existentes na educação e noutras áreas da sociedade portuguesa, a informação já disponível é mais do que suficiente para demonstrar que essas desigualdades existem, impedem a igualdade de direitos fundamentais e precisam de ser combatidas.

É altura de o Governo sair do estado de negação institucional e pôr mãos à obra. Só a implementação de políticas públicas com medidas específicas, robustas e transversais permite a superação da discriminação racial.

Só assim poderemos avançar da Escola que temos para a Escola que imaginamos.

Artigo publicado em plataformamedia.com a 19 de novembro de 2020

Sobre o/a autor(a)

Professora. Dirigente do Bloco de Esquerda e vereadora na Câmara de Lisboa
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