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E se os aliados passarem a ser os inimigos?

A mais importante lição da crise turca é essa incógnita criada pela demonstração de que esta Casa Branca não hesita em agravar focos de tensão e em jogar a roleta russa em qualquer situação.

Há qualquer coisa de estranho e revelador na forma como Trump lida com a crise turca. O pretexto foi a prisão de um pastor norte-americano em território turco, acusado de ser cúmplice do ex-amigo e agora rival e ódio de estimação de Erdogan, Fetullah Gülen. Assunto aparentemente banal, mas a Casa Branca lançou sanções contra um Estado que é um dos aliados mais importantes dos EUA na zona, onde tem feito parte do anel EUA-Israel-Arábia Saudita contra o Irão, e que constitui uma das fronteiras da NATO. As sanções económicas desencadearam o pânico entre os bancos europeus e as empresas internacionais que investiram na Turquia, precipitando a desvalorização da lira, que este ano já caiu mais de 40% e que pode não ter ainda chegado ao fundo, e fazendo disparar o peso da dívida externa titulada em divisas.

A quarta ofensiva

Não há nada de novo no aspeto económico desta crise. Ela é a reincidência de uma crise que ciclicamente atinge os países chamados em desenvolvimento, como aconteceu nos anos 80, ou na década seguinte, e de novo no início do nosso século. Desta vez, há a repetição (a dívida, os juros e as fugas de capitais sugam e desestruturam as economias que mais cresceram nos últimos anos), mas também a particularidade Trump (e a reorganização das alianças dentro do império) — e essa muda tudo.

Vale a pena notar essa repetição, apesar de repetida. Desta vez, em dois anos, as vítimas foram o Brasil, a Argentina, o Irão e agora a Turquia. Do Brasil, a exibição é pornográfica, com a crise de regime espelhada no impasse da eleição presidencial, depois do golpe de Temer que iniciou a corrida para a privatização das reservas petrolíferas do país. Na Argentina, a vitória dos neoliberais com o Presidente Macri desencadeou rapidamente uma desvalorização do peso em mais de um terço, levando a uma resposta inútil (o Banco Central fixou a taxa de juro a 40%, a desvalorização continuou e o governador do banco foi substituído por um dealer de Wall Street) e, como seria de esperar, a uma intervenção do FMI. É simplesmente o maior empréstimo de sempre do Fundo, cinquenta mil milhões de dólares, garantindo a cobertura das necessidades até às próximas eleições, com o devido programa de austeridade. Os governos dos dois países mais influentes da América do Sul estão assim nas mãos de Washington.

O Irão é atingido pela sabotagem do acordo nuclear, de que Trump se retirou, relançando sanções que atingem imediatamente uma economia fragilizada pela queda do preço do petróleo e uma sociedade com crescentes exigências de consumo. O objetivo é aqui político e, assim, favorece a aliança com Israel e a Arábia Saudita. Ora, o problema é que a Turquia, o quarto país a sofrer o ataque de Washington, era fundamental para este sistema de alianças, para fazer uma ponte com a parte do Islão que detesta Israel e não se reconhece nos governantes sauditas (e por isso o Qatar vem em seu socorro com 15 mil milhões de dólares).

Tempo curto para Erdogan

Para Erdogan, que depois do golpe militar falhado de julho de 2016 reforçou o seu autoritarismo e as purgas contra opositores no aparelho de Estado, o tempo é escasso. Os seus recursos em divisas para manter a liquidez do sistema financeiro são limitados e está já confrontado com a pior crise económica desde o início do século. A ameaça de romper com a NATO e encerrar as bases militares norte-americanas na Turquia, vagamente exibida num comício, parece não ser mais do que uma fuga para a frente, porque exigiria que a Rússia, com a qual Erdogan tem vindo a reforçar os laços políticos, lhe pudesse garantir o financiamento em divisas por um longo período. Ou a China. Ora, não parece que o primeiro destes países tenha os meios ou que o segundo tenha a vontade de abrir uma frente tão abissal nas relações com os EUA.

Assim, o critério mais evidente para poder medir a evolução da capacidade de resposta de Erdogan está em saber se consegue resistir a uma intervenção do FMI, pois só tem três hipóteses: ou capitula perante esse controlo financeiro por Washington; ou resiste impondo uma austeridade que corta nas importações, com riscos de descontentamento social acrescido, nomeadamente pelo efeito do aumento da taxa de juro que é a única forma de contrariar a inflação; ou consegue financiamentos suficientemente robustos para vencer a especulação contra a sua moeda. A primeira é a pior para o seu projeto pessoal, a segunda é perigosa para a sua política e à terceira podem faltar os parceiros.

O mundo ao invés

Em qualquer dos casos, a mais importante das lições da crise turca é essa incógnita visceral, criada pela demonstração de que esta Casa Branca não hesita em agravar focos de tensão e em jogar a roleta russa em qualquer situação. Assim, verifica-se que Trump não distingue os aliados tradicionais dos inimigos convenientes, posto que todos são concorrentes, e parece disposto a atingir em primeiro lugar os que se definiam pela aliança militar e pela subjugação política. Mas como funciona um mundo em que os aliados se descobrem apontados como inimigos e como pode ter a política tradicional e a diplomacia algum valor nesse contexto?

Essa é a lição que é indiferente para os inimigos, que já a conheciam, mas certamente assustadora para todos os súbditos do império, porque para estes é a sua própria subordinação que passa a ser a ameaça imediata. Do efeito desta trágica descoberta se saberá no futuro próximo, mas será sempre um mundo de desordem como nunca conhecemos no nosso tempo de vida.

Artigo publicado no Expresso de 18 de agosto de 2018

Sobre o/a autor(a)

Professor universitário. Ativista do Bloco de Esquerda.
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