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E se a inflação nos cair em cima da cabeça?

O problema não está onde os mercados o descortinam, na queda do valor das bolsas. O problema é que a recessão continua e os salários estão aprisionados.

Agora, num ápice, a conversa passou a ser o receio da inflação. Em tradução livre, voltamos a ouvir receitas de austeridade

As personagens de Astérix têm medo de que o céu lhes caia em cima da cabeça. Os economistas não são diferentes. Nos últimos anos, a voz corrente era o medo da deflação, uma consequência da estagnação e da mediocridade do investimento. O BCE apelava aos governos para gastarem mais e avisava que, sem o relançamento da acumulação, as injeções de liquidez não bastam para recuperar a economia. Agora, num ápice, a conversa passou a ser o receio da inflação. Em tradução livre, voltamos a ouvir receitas de austeridade.

O medo dos mercados

As reuniões do BCE (ontem) e da Reserva Federal (próxima semana) têm o assunto na agenda. Sabem que, desmentindo críticas anteriores, a expansão monetária (os balanços dos principais bancos centrais cresceram 20%) não criou inflação. Mas ouvem os mercados, o que, como se sabe, já só quer dizer a finança. São estes que estão com medo, não tanto da inflação, que sabem que será reduzida, mas mais da sua expectativa. E isto tem uma só razão. Foi na presunção de juros zero ou negativos a longo prazo, ou seja, nenhuma inflação, que as bolsas têm vivido tempos de euforia. Assim que se ouviu falar de inflação, o que implicaria subida dos juros, a finança assustou-se: o índice S&P caiu 4,5% de 3 para 5 de março e subiu o custo da dívida a dez anos da Alemanha (de -0,6 para -0,3%) e dos EUA (de 0,9 para 1,1%).

A experiência diz que, com inflação e juros maiores, o futuro imediato seria percebido com incerteza e as poupanças se deslocariam das ações e produtos de risco para outros ativos mais seguros. Vários pesos pesados da economia juntaram-se a coro, cuidado com a inflação. Seria o fim do júbilo bolsista.

Querer e não querer

Se os mercados financeiros protestam, os governos querem e os bancos centrais não parecem temer para já alguma inflação. Os estímulos orçamentais anticrise nos EUA alcançam 27% do seu PIB e a Reserva Federal mantém o objetivo de uma inflação acima de 2%. Há pelo menos a certeza de que, com o desconfinamento geral, a procura vai aumentar e alguns preços vão subir. O pacote Biden coloca 1400 dólares na carteira de cada cidadão e a poupança, com o fecho do comércio e o medo, disparou: em outubro, nos EUA, foi a maior desde 1975. A velocidade da circulação da moeda tem sido três vezes inferior à da década de 80. Ao mesmo tempo, o preço do barril de petróleo, que chegou a ser negativo, voltou aos 60 dólares.

Sim, haverá alguma inflação a curto prazo e isso tem efeitos (desvaloriza ligeiramente as dívidas). Mas será reduzida e o problema não está onde os mercados o descortinam, na queda do valor das bolsas. O problema é que a recessão continua e os salários estão aprisionados.

Malfadadas regras europeias

Em março de 2020, Draghi escrevia no “Financial Times” que “é evidente que a resposta deve envolver um aumento significativo da dívida pública”. Olaf Scholz, ministro alemão das Finanças, atreveu-se a propor a revisão da norma constitucional de travão do défice estrutural a 0,35% do PIB. E a Comissão Europeia concorda com a suspensão das regras do Tratado Orçamental também em 2022. Descobriram que a recessão se aprofunda e que esse é que é o problema, não são as medidas de recuperação da procura.

No entanto, ficam dois problemas. Um, a que já me referi, é a incerteza sobre o que farão os bancos centrais com as dívidas que compraram. É a bomba-relógio dos próximos anos. O segundo é saber se tudo vai depois voltar à normalidade das regras europeias. Há já uma proposta: Olivier Blanchard defendeu em fevereiro que se abandone o Tratado e a regra dos défices, impondo planos restritivos nacionais sob a tutela da Comissão e, a haver disputa, com recurso ao Tribunal Europeu de Justiça. Pior a emenda do que o soneto impossível, mas fica a certeza: toda a política económica se vai definir pela consistência das escolhas orçamentais. E são as regras restritivas que podem matar a recuperação.

Artigo publicado no Expresso a 12 de março de 2021.

Sobre o/a autor(a)

Professor universitário. Ativista do Bloco de Esquerda.
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