E Rui ri

porJoana Mortágua

14 de novembro 2020 - 18:46
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Veja-se a facilidade com que vários deputados laranjas comparam o Bloco de Esquerda e o PCP ao Chega com o único propósito de se convencerem a si próprios da absolvição da sua capitulação, mesmo sabendo que estão de arrasto a absolver forças odiosas.

Sabem como se esvazia o conteúdo de uma palavra até se transformar noutra palavra por a repetirmos muitas vezes? Se alguém adormecesse nos anos 40 do século XX e acordasse em 2020 ficaria espantado com o que aconteceu à palavra fascista, ao arrepio na espinha que deveria provocar, aquele instinto de sobrevivência que nos protege de nos magoarmos a nós próprios.

É preciso ter cuidado com esse fenómeno a que os psicólogos chamam saciedade semântica porque não passa de uma sensação, leva ao engano. Tal como a tortura não deixa de doer mesmo que se repita muitas vezes tor-tu-ra, se alguém soa a fascismo, cheira a fascismo e sabe a fascismo, há mesmo uma grande probabilidade de ser fascista.

E ninguém tem dúvidas sobre o significado da palavra, há filmes, livros e há memória, mas parece que para ser real lhe está a faltar qualquer coisa. O que é que distingue então a existência de candidatos ou até, imagine-se, de deputados e de partidos fascistas – de uma ameaça perigosa para a democracia? Neste momento, e olhando para o resto do mundo, diria que Rui Rio.

A maior tragédia da democracia não é permitir a candidatura de um fascista, é falhar em isolá-lo. O que falta à extrema-direita para ser perigosa é poder. Essa estrada tem duas vias, ambas abertas pelo PSD no acordo que fez com o Chega nos Açores e permitidas pelo Presidente Marcelo: a normalização institucional de partidos cuja ideologia é essencialmente contra a Constituição democrática e a legitimação social das suas ideias.

Disso são culpados, em primeiro lugar, os que na direita tradicional perderam agenda própria, saíram derrotados da crise de 2008 e, incapazes de ganhar eleições para governar, encostam-se à extrema-direita como quem se agarra a um bocado de madeira num naufrágio. No Brasil Bolsonaro contou com o apoio de líderes da direita tradicional, como João Dória (PSDB), e beneficiou da “neutralidade” do MDB e de democratas como Fernando Henrique Cardoso. Nos EUA Trump em menos de nada conquistou o Partido Republicano com apoios que foram da ala mais liberal à mais conservadora.

Quando analisamos as eleições naqueles países vemos como os partidos de direita foram rapidamente esgotando a sua lista de potenciais candidatos “mais-do-mesmo-sistema” e cedendo espaço a fenómenos populistas ultraconservadores. Haveria aqui qualquer coisa a dizer sobre “o sistema” e as suas variadas contribuições liberais para a ascensão da extrema-direita, mas esse é assunto que merece – e terá – vida própria.

Voltando ao Atlântico, o papel histórico a que se prestam partidos como o PSD está condenado ao oportunismo. Veja-se a facilidade com que vários deputados laranjas comparam o Bloco de Esquerda e o PCP ao Chega com o único propósito de se convencerem a si próprios da absolvição da sua capitulação, mesmo sabendo que estão de arrasto a absolver forças odiosas.

Onde é que ficaram as convicções democráticas do presidente do PSD que deu o alerta “nenhum país está livre do extremismo” lamentando o desfecho das eleições em que Bolsonaro foi eleito? Ou que felicitou Joe Biden pela “importante vitória para o mundo” (presume-se que pela derrota de Trump)?

Há mau tempo no canal. Nada a acrescentar ao que Rui Rio disse há exatamente dois anos: “Esse é um erro que cometemos muitas vezes na nossa vida. Esquecemo-nos que muitas vezes a emergência dessas forças [extremistas] é fruto dos nossos erros”.

Artigo publicado no jornal “I” a 12 de novembro de 2020

Joana Mortágua
Sobre o/a autor(a)

Joana Mortágua

Deputada e dirigente do Bloco de Esquerda, licenciada em relações internacionais.
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