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É o jornalismo, estúpido!

Reportagem do “Público” sobre a queda das vendas dos jornais de papel no mundo esquece-se de mencionar o crescimento das assinaturas digitais nos Estados Unidos.

O Público ofereceu aos leitores da edição de domingo 4 de março uma extensa reportagem sobre a crise dos meios de comunicação impressos, partindo da constatação de que “as tiragens e as vendas de jornais em papel, em Portugal, na Europa e nos Estados Unidos, não param de cair”. Estranhamente, a reportagem pouco ou nada aborda as assinaturas digitais. Apenas há uma menção, num gráfico que mostra como a circulação paga dos jornais diários, semanais e revistas impressas de Portugal caiu mesmo quando começaram a vender assinaturas digitais.

A reportagem deu-se ao trabalho de ir desencantar um jornal de papel britânico, The European, formado para combater o “Brexit”, que teve sucesso. Mas esqueceu-se de mencionar o crescimento da circulação digital da imprensa dos Estados Unidos.

O esquecimento é absurdo, porque a questão, como muito bem nota o jornalista Paulo Moura, citado pela própria reportagem, é que nos dias de hoje é “um grande desperdício de tempo e recursos imprimir e comprar um jornal em papel”. Para ele, o jornal de papel “é um produto obsoleto, que corresponde a uma outra época, a da revolução industrial e que até em termos tecnológicos não faz qualquer sentido. Tem a ver com ritmos do passado.”

Circulação digital paga cresce nos EUA

Vejamos então os dados da imprensa dos Estados Unidos.

Em março do ano passado, a circulação paga da revista The New Yorker atingiu o seu ponto mais alto de sempre: 1,1 milhão, somando papel e digital. A The New Yorker é a revista semanal mais prestigiada dos Estados Unidos pela qualidade dos seus artigos, reportagens, críticas de cinema, teatro e livros – e também por publicar um conto em cada edição, tendo revelado na sua história escritores de primeira água, como J. D. Salinger e tantos outros. A decisão de abandonar a oferta gratuita de todo o conteúdo do seu site foi tomada em 2014 e, ao contrário do que se esperava, não só o site tem vindo a aumentar as suas visitas, como as assinaturas digitais cresceram à razão de 85% ao ano.

O panorama dos diários norte-americanos é igualmente otimista: o The New York Times tinha, em setembro de 2017, 2,3 milhões de assinantes digitais, seguido pelo The Wall Street Journal, com 1,27 milhão e o The Washington Post, com 1 milhão.

Donald Trump, que acusou estes e outros média de serem “o partido de oposição” e de fornecerem aos leitores notícias falsas (fake news) tem dado uma grande ajuda a este crescimento da circulação paga: quanto mais esperneia o milionário-presidente, mais crescem as assinaturas digitais.

E é aqui que reside realmente a diferença. A New Yorker, o Times e o Post continuam a fazer aquilo que os levou ao topo dos jornais norte-americanos: jornalismo investigativo. Não é um jornalismo isento, porque isso não existe, mas é um jornalismo denso, aprofundado, que não aparece como a voz do dono – mesmo se às vezes segue uma agenda que o coloca em apuros, como foi o caso de atitude tomada pelo Washington Post de se opor ao perdão a Edward Snowden. Um jornalismo que vai muito além da espuma dos dias. E esse jornalismo encontra leitores dispostos a pagar por ele. Muitos.

Jornalismo de qualidade

Falamos de publicações que denunciaram as torturas em Abu Ghraib (New Yorker), o caso Watergate (Post) ou os Documentos do Pentágono (New York Times). De jornais que mereceram ser chamados de “Quarto Poder”. No fundo, o que está em causa nos dias de hoje é saber se, independentemente do meio (e eu, pessoalmente, acho que o meio papel está condenado), a aposta é no jornalismo de qualidade. Quem fizer esta aposta, mais tarde ou mais cedo, será vencedor.

Não é o caso do Público. Já conto às dezenas os amigos e conhecidos que deixaram de comprar o Público cansados das agendas particulares que movem muitos dos seus artigos. Muitos dos seus antigos leitores não esquecem o apoio entusiástico à invasão do Iraque e a lágrima furtiva do seu diretor da época diante do derrube da estátua de Saddam. O Washington Post fez algo parecido, mas pouco depois reconheceu que não tinha dado espaço no jornal às opiniões dos que se opunham à invasão.

O Público nunca tomou iniciativa semelhante. Já era tempo de os seus responsáveis refletirem sobre o futuro e entenderem que o problema não é o papel ou o digital. O problema é apenas e só o jornalismo.

Sobre o/a autor(a)

Jornalista do Esquerda.net
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