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É mesmo a sua natureza

A cansada fábula da rã e do escorpião nem chega para descrever a baixeza da decisão de Donald Trump na desvinculação do Acordo de Paris.

Estava-se à espera, sim, os sinais eram conclusivos, sim, afinal uma das primeiras medidas da nova administração foi retirar o tema das alterações climáticas da página da Casa Branca. Mas as contradições também se notavam: Wall Street não quer esta corrida para o quarto escuro, as ações das empresas de carvão caíram depois do anúncio, e mesmo Rex Tillerson, o homem que Trump foi buscar à Exxon-Mobil para dirigir a política externa dos EUA, se opunha a esta decisão. Depois, alguns dos principais municípios norte-americanos estão a organizar a revolta.

Substancialmente, todos perdemos com esta escolha. Os Estados Unidos, por ficar reforçada uma extrema-direita que faz política em modo de fantasia armada, o que acrescenta tensões – o governo mais poderoso do mundo é o mais perigoso do mundo. Não é Jong-Un, é mesmo Trump. E, sobretudo, por poder ser um processo sem retorno, visto que se vulnerabiliza desta forma a economia que cria os turbilhões: haverá mais desemprego no país e haverá atraso tecnológico. O presidente argumentou o contrário na sua alocução no Jardim das Rosas, mas convém lembrar que o estudo que citou sobre os impactos no emprego é patrocinado pelo Conselho Americano para a Formação do Capital e pela Câmara de Comércio dos EUA, e é somente uma peça de artilharia ideológica, aliás desmentido pelos cálculos estratégicos de grandes empresas, que percebem que é tão viável viverem agarradas ao carvão, ao petróleo e ao gás natural, como imaginarem que podem accionar as locomotivas actuais com fornalhas de lenha.

Fica ainda a perder a humanidade, pelo atraso na resposta às alterações climáticas: a nossa espécie, a mais perigosa que vive no planeta, é também a que tem consciência e ciência dos riscos que causa, e agora recua-se nas modestas decisões que ajudavam a caminhar para a solução. Como já se começou a saber desde há muito, passam cinco décadas sobre os primeiros relatórios que identificavam o perigo das emissões poluentes e de uma economia viciada em carbono, este recuo é ainda mais grave.

O Acordo de Paris é só um pequeno passo para um grande problema. Conter o aumento da temperatura média em 1,5º graus seria porventura um sinal, mas o facto é que os objetivos voluntariamente definidos pelos países neste acordo não vinculativo já nos levariam a um aumento para o dobro do que é estatuído no preâmbulo do texto assinado pelos 194 Estados. Mesmo com Paris, o planeta está em risco e é neste século, porque pode atingir fronteiras irreversíveis na degradação ambiental. É preciso portanto muito mais, é no tempo das gerações dos leitores e das leitoras, ou deste cronista, que se terão de dar os passos fundamentais para financiar as energias renováveis, para alterar os preços e o sistema produtivo, para criar novas competências e reconverter empregos. Haverá resistências políticas e sociais, os sindicatos desconfiarão, a finança procurará usar este poder para ganhar novas rendas, mas é neste tempo próximo que tudo se decide.

Já se ouvem, entretanto, as vozes que, no desastre, reclamam a sua vitória: que esta é uma prova da superioridade da Europa. Juízo, por favor. Quem falou na União Europeia foi um comunicado de três governos, a Alemanha, a França e a Itália, porque acham que o que conta é o G7 (entretanto, Teresa May e os governos do Canadá e Japão decidiram ficar de fora da crítica ao amigo americano). Ou seja, a União põe-se na fila, atrás de quem manda.

Mas, e mais importante, a UE colaborou sempre com o adiamento das soluções para as alterações climáticas, a começar pela promoção do mercado das emissões, que favorecia a não reconversão industrial dos países mais ricos a troco do empobrecimento dos mais pobres. Esse imperialismo recalcitrante foi a regra das políticas até ao Acordo de Paris e ainda lhe sobrevive. Numa palavra, depois de Trump recusar o Acordo de Paris, é preciso salvar esse passo e dar outros. Com quem for.

Artigo publicado em blogues.publico.pt a 2 de junho de 2017

Sobre o/a autor(a)

Professor universitário. Ativista do Bloco de Esquerda.
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