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E a discussão, tem género?
Em tempos de histeria ideológica e de intenso revisionismo histórico, a alter-right mundial empenha-se no combate a uma suposta ideologia de género que estaria rasgando a ordem social no Ocidente. Segundo os seus "combatentes", a ideologia de género visa corromper a moral pela dissolução do binário de género masculino/macho-feminino/
No nosso quadro cultural, esta binaridade existe de forma estruturante, sendo passada geracionalmente como um reflexo, uma mnemónica cultural incontestável. Desde pequenas, as crianças são ensinadas que os carros são brinquedos “de menino”, as bonecas “de menina”, que jogar à bola é coisa de menino e as meninas que gostam dessa atividade são classificadas como «maria-rapaz». Esta classificação tem por base o tal binário estruturante. É, pois, com base nesse binário que se inscrevem as reações à recente coleção unissexo da marca Zippy. Entre os comentários mais ferozes, encontramos uma associação entre roupa unissexo (que sempre existiu) e uma teoria da conspiração sobre um plano mundial para transformar as crianças em LGBT.
Excetuando posições extremadas que não consideram a sociedade como um produto onde a mudança é negociada, muitas das propostas erroneamente associadas a uma agenda de género visam, somente, um equilíbrio social além das amarras do binário. Prova das amarras de género sociais está na designação de “eles” para um grupo composto, p. ex., por um homem e dez mulheres. O masculino sobrepõe-se ao feminino pela força normativa do género masculino na construção da memória social.
Um caso exemplar. Ao brincar com dois irmãos, uma menina de dois anos, e um menino de cinco, proponho que o menino seja o “homem aranha” e ela “a menina aranha”. A menina rapidamente afirma-se como “homem aranha” e designa o irmão como “menina aranha”. Noutra brincadeira, ela escolhe ser o Pedro e atribui ao irmão o papel de Heidi. Sobre este, afirma-o como “a mano”, e diz que quer ver “o televisão”. Ora, este caso, como outros, mostra que somos nós, adultos, que vamos socializando as crianças no binário de género, ao corrigirmos, instintivamente, as atribuições de género às palavras e pessoas. É assim que chegamos a circunstâncias onde encontramos, por exemplo, Damares Alves, ministra brasileira da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, a afirmar que “menino veste azul, menina veste rosa”. Ora, eu que estudei num colégio católico, sempre encontrei rapazes de camisa rosa e raparigas de camisa azul sem que houvesse ali ausência da heteronorma. É por isso que o feminismo aborrece mais do que o femicídio. É por isso que as mulheres continuam a ser todas filhas de Medusa: culpabilizadas da sua própria violação.
O fanatismo que vivemos é discordante com o princípio da liberdade, do respeito e do direito à diferença e à autodeterminação. A ideologia de género, propriamente dita, existe de forma mais evidente na cabeça daqueles que a propõem combater do que naqueles que são os seus alvos. A ideologia de género não é o exercício de supressão de barreiras que limitam a liberdade de identidade (a psicologia, a antropologia e outras ciências mostram que o género diz respeito ao reconhecimento que o indivíduo tem de si mesmo) ou que visam flexibilizar a linguagem tornando-a mais inclusiva, por exemplo, para as mulheres. Ideologia de género é a imposição do binário que se quer por universal aos demais. É, igualmente, o desrespeito pelas diretivas da ONU, que recomenda o respeito pela identidade de género como garante da autodeterminação.
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