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E depois da Covid-19

Após esta epidemia talvez seja o momento de se equacionar a existência de um orçamento programático para o SNS que permita decisões de investimento que ultrapassem o simples ano civil, ou seja, uma programação mais longa no tempo.

Esta epidemia teve, aparentemente, a sua origem na China e, quando apareceu, era “certo” que, a haver propagação, nunca seria entre humanos. Como sabemos, rapidamente se alastrou ao resto do mundo com uma velocidade nunca antecipada, espalhando a morte, o medo, a ansiedade e a depressão entre os cidadãos dos vários países, criando um impacto económico e social potencialmente mais devastador do que o provocado por uma Grande Guerra ou uma Grande Depressão Económica.

é necessário que nos pautemos por uma defesa intransigente de um SNS de acesso universal, um sistema solidário e menos burocrático

Entre nós, o pico desta epidemia ainda está longe de ser alcançado e modelos matemáticos de previsão multiplicam-se para a tentar explicar. Só que o ser humano não está preparado para lidar bem com a incerteza (e a Economia da Saúde bem o reconhece e tenta há várias décadas disso convencer gestores e decisores políticos!) e mesmo a epidemiologia e a estatística têm limitações que, numa altura destas, arrastam impactos quase inesperados.

Dizia há dias o médico responsável pelo Serviço de Infeciologia do Hospital de São João: “e isto tudo por causa de um ser minúsculo que, se detetado no início, qualquer gota de álcool o teria matado”.

No entanto, relativamente ao Sistema Português de Saúde e, mais concretamente ao nosso Serviço Nacional de Saúde (SNS) já muito se fez nas últimas semanas. E ocorreu principalmente uma coisa: os políticos submeteram-se às opiniões e conselhos dos técnicos e especialistas da área da saúde pública e da epidemiologia. Temos de reconhecer e valorizar esta atitude, infelizmente tão pouco usual na governança da saúde do nosso país.

Ninguém, nem nenhum sistema político ou de saúde, estava preparado para uma situação destas, e estudos recentes evidenciam mesmo alguma proatividade dos nossos dirigentes

Não sou daqueles que, cómoda e confortavelmente nos seus locais de recuo, por mera ignorância ou estupidez ou mesmo seguindo agendas pessoais ou corporativas, dizem que a reação a esta epidemia foi tardia. Ninguém, nem nenhum sistema político ou de saúde, estava preparado para uma situação destas, e estudos recentes evidenciam mesmo alguma proatividade dos nossos dirigentes, nomeadamente quando comparado o tempo das suas decisões com a dos dirigentes espanhóis ou do Reino Unido.

Não havia recursos e não seria natural que existissem. Teria sido completamente impossível munir o SNS de forma a estar preparado para uma epidemia como esta. Os que agora criticam a atuação das autoridades de saúde são provavelmente os mesmos que criticaram o facto do Ministério da Saúde, na altura do surto pandémico de gripe do subtipo H1N1, ter adquirido no mercado internacional grande quantidade de um medicamento antiviral que, felizmente para todos nós, não foi necessário e teve de ser destruído.

A propósito da preparação para epidemias como a que presentemente estamos a viver, lembro a publicação em outubro de 2019 do Índice de Segurança Global na Saúde, pela Escola de Saúde Pública da Universidade John Hopkins nos EUA, em colaboração com a The Economist Intelligence Unit, em que os 195 países que compõem o grupo International Health Regulations da OMS foram classificados face ao seu estado de preparação a riscos biológicos, naturais, intencionais ou acidentais que ameaçam a saúde global, a segurança internacional e a economia mundial. Este índice classifica os países com base em seis categorias: (i) prevenção de surgimento ou libertação de agentes patogénicos; (ii) deteção precoce e notificação de epidemias de potencial preocupação internacional; (iii) resposta rápida e mitigação da propagação de uma epidemia; (iv) suficiência e robustez do sistema de saúde para tratar os doentes e proteger os trabalhadores da saúde; (v) adesão às normas internacionais; e (vi) ambiente de risco global e vulnerabilidade do país a ameaças biológicas. Neste índice, Portugal surge na 20ª posição após os EUA, Reino Unido, Holanda, Austrália, Canadá, Tailândia, Suécia, Dinamarca, Coreia do Sul, Finlândia, França, Eslovénia, Suíça, Alemanha, Espanha, Noruega, Letónia, Malásia e Bélgica.

Uma coisa é certa: a epidemia apanhou o SNS e o próprio sistema de saúde com debilidades conhecidas. Entre elas, podemos selecionar o crónico subfinanciamento, agravado em tempos recentes da presença entre nós da Troika e que tem degradado substancialmente o SNS e limitado decisões políticas de saúde, principalmente nas áreas das aquisições e contratações. Segundo um muito recente documento da UE, os pagamentos diretos (out-of-pocket) em Portugal aumentaram para 27,5% da despesa total da saúde. De facto, quando entre 2010 e 2017 as despesas de saúde diminuíram cerca de um ponto percentual do PIB, a despesa pública com a saúde reduziu cerca de três pontos percentuais, de 69,8% para 66,4%. Ainda hoje a despesa per capita de Portugal em cuidados de saúde (2.029€) está 30% abaixo da média da União Europeia (2.884€).

Esta epidemia também realça a forma como temos vindo a tratar os nossos mais velhos. Em 2017 éramos o país do mundo com a quarta maior percentagem de pessoas com 60 ou mais anos (27,9%) e, em 2050, prevê-se que ocupemos a terceira posição, com 41,7% de idosos. Além disso, dados do INE indicam que o número de idosos irá crescer pelo menos até 2060 e que se assistirá a uma cada vez maior redução da população em idade ativa, das mulheres em idade fértil e a um aumento de pessoas com doenças crónicas e dependentes. Dados de novembro de 2019 da OCDE indicam que as mulheres em Portugal com 65 ou mais anos ainda vivem 70% das suas vidas com limitações de atividade e os homens 57%, os valores mais altos da UE. Segundo esta mesma fonte, em 2017, enquanto que, em média, a despesa em cuidados de longa duração tem vindo a crescer em toda a OCDE, com valores consolidados de 14%, com países como a Irlanda, a Bélgica, a Dinamarca, a Suécia, a Holanda e a Noruega a ultrapassar os 20%, o Reino Unido com 19% e a Alemanha com 18%, Portugal dedica, da sua já escassa percentagem do PIB para a saúde, apenas 3% aos cuidados de longa duração. Isto tem de ser modificado.

Se quisermos sobreviver em termos de saúde e politicamente, os nossos legisladores e dirigentes políticos têm de alterar substancialmente a forma como encaram o setor da saúde na sociedade portuguesa

Se quisermos sobreviver em termos de saúde e politicamente, os nossos legisladores e dirigentes políticos têm de alterar substancialmente a forma como encaram o setor da saúde na sociedade portuguesa. A experiência que estamos a viver bem demonstra que a frase “a saúde em todas as políticas, todas as políticas na saúde” da OMS faz cada vez mais sentido. A experiência atual revela que é imperioso que o Ministério da Saúde ascenda a posições superiores na hierarquia interna dos governos em Portugal. É urgente o desenvolvimento de políticas inovadoras e serviços públicos personalizados para a pessoa idosa e dependente, bem como medidas direcionadas para a habitação, o emprego, a assistência médica, as infraestruturas, a proteção social e a melhoria das condições dos lares, entre muitas outras.

Após esta epidemia talvez seja o momento de se equacionar a existência de um orçamento programático para o SNS que permita decisões de investimento que ultrapassem o simples ano civil, ou seja, uma programação mais longa no tempo.

Por fim, há que ter em conta que o isolamento social cria problemas de solidão, de novo, com maior incidência nos mais velhos. Tempos estranhos de solidariedade estes em que vivemos e em que a distância significa amor e provavelmente a melhor forma de nos mantermos vivos. Os mais velhos têm de reganhar a esperança em viver.

E não podemos esquecer a situação das pessoas infetadas, alguns mesmo profissionais de saúde, que não conseguem deixar de assumir a responsabilidade de terem infetado outros durante esta epidemia. Há que intervir na sociedade de forma a que estes nossos concidadãos não sintam esta culpa. Até porque injusta.

É justo louvar os profissionais do SNS que estão neste momento na frente da luta a esta epidemia. Mas é fundamental que, após o surto da Covid-19, não nos esqueçamos desses louvores

É justo, isso sim, louvar os profissionais do SNS que estão neste momento na frente da luta a esta epidemia. Mas é fundamental que, após o surto da Covid-19, não nos esqueçamos desses louvores. E não nos esqueçamos que se mantém a necessidade de reforçar os recursos humanos existentes no SNS, não só nas profissões ditas tradicionais de médicos, enfermeiros, farmacêuticos e secretariado administrativo, mas também nas denominadas novas profissões onde, de uma forma não exaustiva, eu incluiria psicólogos, técnicos de diagnóstico e terapêutica, fisioterapeutas, nutricionistas e dietistas. Há que repensar rapidamente as carreiras destes profissionais e olhar para a situação de esgotamento e desilusão com que estarão no fim desta pandemia. Há que reconstruir o SNS e isso só é possível com profissionais em plenas condições físicas e psicológicas para desempenharem as suas funções de uma forma competente e humana. No entanto, alguns mais pessimistas temem que o esquecimento dos momentos passados, que tanto têm condicionado as políticas socias, também aqui ocorra e tudo volte ao que era dantes. É necessário fazermos as coisas de uma forma diferente e não perdermos a oportunidade para reconstruir o SNS, como recentemente aconteceu com a oportunidade perdida durante a ocupação pela Troika.

nas decisões políticas, há que valorizar cada vez mais os indicadores sociais, principalmente quando comparados com os indicadores financeiros

E aqui incluo a necessidade de repensar a forma como os serviços de saúde, principalmente os hospitais, estão organizados, em “silos” de especialidades, sem grande troca de informação e recursos entre si. A centralidade dos cuidados no cidadão exige uma nova forma de organização mais baseada em grandes condições de saúde, como oncológicas, cerebrovasculares, metabólicas, músculo-esqueléticas, entre outras, e não nas tradicionais especialidades. E os sistemas de informação têm também de ultrapassar os muros das instituições de saúde e permitirem que a informação flua entre os vários níveis de cuidados. E isto deve incluir necessariamente também a prestação privada e social, em especial a produzida naquelas unidades (e são praticamente todas) que recebem, de uma forma ou de outra, financiamento estatal.

Neste momento não sabemos o que será a “normalidade” após a Covid-19. De uma coisa parece são se poder discordar: haverá um país e um mundo diferentes e a relação que teremos com a comunidade nunca mais será a mesma. Caber-nos-á a nós não cometermos erros do passado.

Entre nós, é necessário que nos pautemos por uma defesa intransigente de um SNS de acesso universal, independentemente do estatuto socioeconómico, situação profissional ou estatuto jurídico, um sistema solidário e menos burocrático. E nas decisões políticas, há que valorizar cada vez mais os indicadores sociais, principalmente quando comparados com os indicadores financeiros que ainda tanto orientam as principais decisões políticas.

Uma reflexão em 27 de março de 2020, 10 dias após a declaração do estado de emergência em Portugal

Sobre o/a autor(a)

Professor da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra e Diretor do Centro de Estudos e Investigação em Saúde
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