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Duvidar para conhecer

A reflexão e a filosofia são indissociáveis da prática política. De que outro modo podemos evidenciar as ideias inerentes ao nosso sistema e as nossas vidas, que foram secularmente neutralizadas, normalizadas e enraizadas como inerentes à essência humana?

A dúvida não é a ausência de conhecimento. É antes uma inquietação que quer ser apaziguada, como quando nos interrogamos se deixámos, ou não, a luz da casa ligada.”

Quando era pequena, li o “Discurso do Método” de René Descartes. Não entendia a maioria do significado do palavreado filosófico e intelectual proposto pelo autor - na verdade, não entendi quase nada. Houve só uma ideia essencial que me inquietou- como é que alguém podia duvidar da sua própria existência, como se a experiência sensorial não fosse suficiente para comprovar que somos reais?

A conceção da dúvida para a formulação das bases do conhecimento das nossas convicções, remetendo à ideia clássica do “só sei que nada sei” talvez seja uma lente que nos permita olhar para a nossa intervenção na sociedade global em que vivemos. O acesso à informação, incessante permite-nos acreditar que temos o mundo na ponta dos nossos dedos. As redes sociais, os media tradicionais bombardeiam-nos com explicações simplistas de fenómenos altamente complexos, especialmente se tivermos em conta o modo como o algoritmo funciona, fechando-nos sobre os campos ideológico-políticos nos quais nos inserimos. Sem darmos conta, vamos parar às echochambers da internet, onde as nossas crenças reverberam e são automaticamente confirmadas por pessoas ou informações semelhantes às nossas. São as chamadas profecias de auto confirmação, que aniquilam qualquer espécie de dúvida que pudéssemos ter anteriormente.

Certamente haverá um preço a pagar quando a construção de políticas para a sociedade deriva deste alheamento ao contraste da sociedade como um todo, à apresentação de provas contrárias às nossas teses iniciais que nos permitem comprovar se estavam erradas ou se nos agarramos a elas com ainda maior convicção.

Descartes defendia que quando deixávamos de pensar deixávamos de existir. Talvez a intervenção política não possa ser refletida de outra forma. A partir do momento em que nos fechamos sobre as nossas certezas absolutas deixamos de conseguir olhar para a realidade, de interagir com o que se opõe a esse afinco de convicção. Deixamos de conseguir realizar a autocrítica, crucial para a ponderação e preparação do rumo coletivo a seguir.

A reflexão e a filosofia são indissociáveis da prática política. De que outro modo podemos evidenciar as ideias inerentes ao nosso sistema e as nossas vidas, que foram secularmente neutralizadas, normalizadas e enraizadas como inerentes à essência humana?

O desenvolvimento do processo crítico tem sido esquecido nas nossas sociedades, relegando o papel da filosofia, das ciências sociais para segundo plano, como se fossem devaneios individuais. Como se repensar as estruturas, as suas práticas não coubesse no “mundo real”. Resta refletir sobre a quem servem estas políticas – e, claro, de que modo podem ser desmanteladas.

Porque, afinal de contas, a quem serve perpetuar a ideia de que tudo está bem e que nada deve mudar?

Sobre o/a autor(a)

Estudante e ativista da Greve Climática Estudantil.
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