Duas notas sobre a suposta impossibilidade da política

porCarlos Carujo

30 de abril 2010 - 15:26
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1- A economia como tragédia



Nas tragédias gregas o destino está marcado. O herói revolta-se mas a força dos deuses esmaga-o necessariamente. Toda a economia capitalista é, dizem-nos, como se fosse uma tragédia grega em que qualquer rebeldia política está votada ao fracasso perante as duras leis do destino. E a crise actual não foge à tragédia. A crise, antes de ser a tragédia social grega, já era tragédia grega. E o que hoje se pretende impor como a única discussão possível é se a crise portuguesa está destinada a ser grega, repetindo os mecanismos do seu colapso, ou se vai ser uma Grécia menor.



Assim, cada um/a é chamado agora a desempenhar um papel no enredo. Para os trabalhadores/as, desempregados/as e reformados/as só haveria um papel disponível: o de vítima. Para Sócrates e Passos Coelho a escolha recai no papel de figurantes dóceis e subalternos com a pretensão de deixar que as suas personagens surfem a onda e passem mais ou menos incólumes relativamente aos sacrifícios que imporão, mais ou menos como salvadores da pátria na heróica coragem da austeridade imposta aos mesmos de sempre e na escolha difícil de fazer “o que tinha de ser feito”. E, desta forma, a política estaria destinada a ser a vítima colateral da crise num mundo fechado e sem alternativas.



O destino está marcado, o destino é mercado. Dizem que uma mão invisível embala o berço do capitalismo em tempos de crescimento tornando nefasta qualquer intervenção política. O que é certo é que mãos menos transcendentes mas igualmente inevitáveis se colocam de palma aberta em peditório perante a política quando as coisas lhe correm mal. Transcendentes ou não, as mãos que nos vão aos bolsos têm necessidade dessa inevitabilidade. Travar a tragédia repetida é rasgar alternativas na imanência da luta. Sem heróis.



2- A luta política como crime



Na passagem de mais um aniversário do 25 de Abril, um canal de televisão permitiu o desfile a preto e branco de um Abril feito de ocupações de casas e de terras. Onde ainda resiste à memória selectiva, a radicalidade desta luta apresenta-se agora como que domesticada pelo desbotar das imagens e pela sua apresentação nostálgica como folclórico erro de juventude. A apresentação procura esconjurar a hipótese de um regresso. Curiosidade histórico-barbuda, a luta política nunca mais poderá voltar a ser assim.



E no entanto. O Abril das ocupações regressa por outras portas não televisionadas. No Brasil, o Movimento Rural dos Trabalhadores sem Terra declarou este mês como “jornada nacional de lutas pela reforma agrária: lutar não é crime” em memória dos 19 assassinados durante uma operação da polícia militar no dia 17 de Abril de 1996, no que ficou conhecido como o massacre de Eldorado de Carajás. E o assassinato não é só um dado histórico como nos recordam brutalmente algumas das vítimas deste Abril: Pedro Alcântara de Souza, coordenador de políticas agrárias da Federação de Trabalhadores da Agricultura familiar do Pará; José Maria Filho, presidente da Associação Comunitária São João do Tomé, e da Associação dos Desapropriados Trabalhadores Rurais Sem Terra - Chapada do Apodi; Arnaldo, técnico agrícola e professor, do Assentamento Catalunha, o maior de Pernambuco. Segundo dados da Comissão Pastoral da Terra, entre 1985 e 2009 foram assassinados 1546 trabalhadores rurais, sendo que só no ano passado houve 25 mortos. E a mesma fonte dá-nos uma imagem da impunidade: apenas 85 destes crimes foram julgados e apenas 71 executores dos crimes e 19 mandantes (dos quais nenhum se encontra preso) foram condenados. Isto ao mesmo tempo que aumenta a prisão e criminalização dos/as lutadores/as sociais sem terra que vão sendo acusados de “esbulho possessório” e de “formação de quadrilha”.



Repressão oficial e oficiosa, criminalização e impunidade são a receita excêntrica que pretende matar a possibilidade de uma luta política justa pela reforma agrária, pelo direito simples a cultivar as terras que se mantêm como improdutivas em vez de viver na miséria. O esbulho possessório da quadrilha dos grandes fazendeiros é o verdadeiro crime contra a dignidade humana. Nele, encontramos de mãos dadas a mão invisível dos mercados e a mão dura de polícias e assassinos a soldo. Lutar, por sua vez, não é crime. Se a tragédia dos mercados se repete como a farsa em que os seus anti-heróis recusam a política negando a possibilidade da rebeldia, no Abril alargado de quem escolhe lutar para fugir à miséria a vontade de viver é naturalmente a rebeldia e a coragem das alternativas que não sendo inevitáveis se apresentam tão necessárias como o pão para a boca.



Não tem nunca de ser como os poderes do mundo ditam. A política estará onde não houver inevitabilidade económica ou fatalidade antropológica. A política estará onde a legitimidade falar mais alto do que a ilegalidade da luta. Tal como dizia Daniel Bensaïd, apesar de todos os riscos que agora enfrenta, a política que muda, a política sem transcendências, a política profana é urgente.

Carlos Carujo
Sobre o/a autor(a)

Carlos Carujo

Professor.
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