Dormir com o inimigo

porMiguel Guedes

07 de março 2022 - 16:48
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O líder russo extremou posições sobre a independência da Ucrânia, concretizando-a numa guerra, condenada a escalar e a assumir contornos ainda mais dramáticos nos próximos dias e semanas.

Erguem-se corredores humanitários após o término da 2.ª ronda de negociações do conflito russo-ucraniano. Quando qualquer possibilidade de cessar-fogo era uma miragem, não havia qualquer esperança de que pudesse ser melhor ou diferente. A 3.ª ronda de negociações está marcada para a próxima semana, mas permanecer no mesmo lugar não é condição de mudança, é pressuposto para que nada mude. Vladimir Putin é um jogador em plena guerra ideológica e, curiosamente, até tem inflectido nos últimos meses: radicalizou-se.

O líder russo extremou posições sobre a independência da Ucrânia, concretizando-a numa guerra, condenada a escalar e a assumir contornos ainda mais dramáticos nos próximos dias e semanas. Mas desde que rebentou o conflito armado, não há uma vírgula que inflicta no discurso oficial do Kremlin. Reiteram-se os mesmos argumentos, o genocídio em Donbass, a insistência na necessidade da "desnazificação" da Ucrânia como se a extrema-direita não estivesse representada na Duma russa (sendo verdade que as forças fascistas também estiveram bem presentes nos protestos de Maidan, em 2014, e se ramificaram - desde então - na Ucrânia, sem oposição de Zelenskiy). A extrema-direita sairá reforçada, tanto na Rússia como na Ucrânia, e não é por acaso que todos os líderes informais do fascismo mundial defendem a invasão perpetrada por Putin. Mais velada, a aparente razão da escalada: a aproximação da Ucrânia à NATO tem passado para segundo plano nas linhas de controvérsia. Fica assim mais clara a verdadeira razão, a ideológica, subjacente à solução final que Putin defende: para ele, "russos e ucranianos são o mesmo povo".

Esta visão nacionalista grão-russa de Putin, que culpabiliza a Revolução de 1917 por constituir três povos eslavos distintos (russo, ucraniano e bielorrusso) em detrimento de uma grande "nação russa", é um tratado de chauvinismo imperialista que, depois de fazer várias vítimas desde a dissolução da URSS, pretende agora decapitar o poder ucraniano de forma a permitir a colocação de um novo fantoche russo, servil e conveniente. Desde a criação, no início da década de 90, da "República da Transnístria" na Moldávia ou da "República da Abkhazia" na Geórgia, passando pela ocupação da Chechénia ou pelo controlo da Ossétia do Sul, o expansionismo russo era evidente. Putin reforçou todos os laços ideológicos com esta visão, com o apoio da oligarquia russa (que tantos, em Portugal, suportaram através de negócios e "vistos gold" e agora, demagogicamente, fingem nada saber). A anexação da Crimeia, o separatismo em Donbass, o apoio a Lukashenko na Bielorrússia, a intervenção militar no Cazaquistão, o jogo sujo com o preço da energia e com os oleodutos, a concretização da "Organização do Tratado de Segurança Colectiva" sob rédeas firmes do Kremlin. Não eram sinais, eram bandeiras.

O reforço militar e a aposta na escalada da guerra dificilmente farão a diferença. Deposita-se esperança no toque a rebate das forças armadas russas e, sobretudo, na resistência da sociedade civil do país. Desde o dia 1 da invasão, ainda sem sentir o peso das sanções, 1800 protestantes foram detidos, provando que a guerra interna de Putin não será fácil de ganhar. Após décadas em que andámos a dormir com o inimigo, pode ser o deslaçar interno que o venha a acordar.

Artigo publicado em “Jornal de Notícias” a 4 de março de 2022

Miguel Guedes
Sobre o/a autor(a)

Miguel Guedes

Músico e jurista. Escreve com a grafia anterior ao acordo ortográfico de 1990.
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