Se há algo que a invasão russa ao território ucraniano nos mostrou é que a solidariedade internacional não é para todos, que a vida de uns vale mais que a de outros e que a hipocrisia reina no ocidente.
A indignação justa que o ocidente tem demonstrado, ao longo deste período em que a Rússia tem cometido atrocidades no território ucraniano, é a indignação que faltou sempre aos média ocidentais para atrocidades cometidas, frequentemente pelas próprias potências ocidentais, noutros cantos do mundo.
Claro que num belo exercício de propaganda e manipulação política, os crimes de guerra que os ditos países “livres” cometem nunca são vistos desta forma, há toda uma manipulação para convencer o povo de que todos aqueles que morreram no Líbano, no Iraque, na Palestina, no Iémen, no Afeganistão, etc. que tiveram esse destino trágico porque representavam um perigo para as ditas democracias ocidentais e, será então o ocidente que vai libertar aquela gente que vive tão oprimida. Se tiverem de bombardear escolas, hospitais, monumentos religiosos, etc. e se 80% dos mortos forem civis, tudo bem, o importante é que o ocidente seja visto como o grande defensor do dito mundo livre.
Assim que começou a guerra na Ucrânia, não demorou muito até vermos vários jornalistas nos meios de comunicação ocidentais a reproduzirem um discurso racista e xenófobo, onde um correspondente da CBS chegou mesmo a dizer que era difícil assistir à guerra na Ucrânia porque, ao contrário de países como o Iraque, Afeganistão e Palestina, que a Ucrânia era um país civilizado. O pensamento de Edward Said, no seu livro Orientalismo, pode-nos ajudar a compreender este fenómeno. Ele argumenta que houve a necessidade de criar o oriente como um contraste do mundo ocidental (principalmente EUA e Europa), onde o ocidente impôs uma visão imperialista sobre o oriente, retratando o mundo oriental como violento, primitivo, etc. de modo a inferiorizar a sociedade oriental em relação à ocidental. O orientalismo não é nada mais nada menos do que uma ferramenta política utilizada pelas potências ocidentais precisamente para justificar a colonização dos outros povos.
As diferenças entre a visão que o mundo ocidental tem da invasão da Ucrânia e de outros países que foram ou continuam a ser invadidos é notória. Onde a resistência ucraniana é vista como um ato de coragem, armada e financiada por outros países, outros movimentos de resistência são apelidados de terroristas como, por exemplo, é o caso da resistência palestiniana. Enquanto vimos a pressa em aplicar sanções à Rússia e ao cancelamento da sua cultura, o movimento de Boicote, Desinvestimento e Sanções, que urge a necessidade de impor sanções e boicotar o estado de Israel, numa tentativa de pôr fim à ocupação ilegal e à colonização do território palestiniano, é agora tratado como um movimento terrorista. Se até aqui o que vimos foi o ocidente a ignorar o direito à soberania e autodeterminação dos povos, esses dois conceitos agora tornaram-se intocáveis na questão ucraniana, em que sim, a Ucrânia tem direito à sua soberania e autodeterminação e isso é indiscutível.
No entanto, porque é que valorizamos mais umas vidas que outras? Porque é que a nossa empatia serve para uns mas não serve para outros? E porque é que a invasão a uns países não tem justificação possível mas a invasão de outros tem? Eu não acredito que naturalmente as pessoas não se preocupem com a morte de cidadão sírio, nem acredito que as pessoas sejam desprovidas de qualquer sentido de empatia. O que acontece, é que os meios de comunicação são opinion makers e impõem a narrativa que convém à agenda do poder dominante, sendo uma ferramenta de legitimação dos seus interesses económicos e políticos. Posto isto, a narrativa que serve às potências ocidentais é descredibilizar e invisibilizar todas as vítimas de crimes cometidos ou apoiados pelo ocidente. A invisibilização destas vítimas é uma tática comum dos meios de comunicação ocidentais, se não forem mostrados os crimes que são cometidos em lugares que não lhes interessa, então estes não acontecem. Depois, se mostrarem os crimes que aí são cometidos passam rapidamente à parte da descredibilização e manipulação para que a população acredite que aqueles crimes foram cometidos porque tinha mesmo de ser.
Ao longo do tempo, a banalização e o branqueamento que os meios de comunicação ocidentais fizeram destes crimes cometidos pelo próprio ocidente levou a uma desumanização e a uma empatia seletiva por parte do mundo ocidental. O nosso silêncio em relação a todos os crimes cometidos no Médio Oriente, em algumas regiões da Ásia e na América Latina, torna-nos cúmplices. E como escreveu a poetisa palestiniana Suheir Hammad: “Ocupação significa que tu morres a cada dia enquanto o mundo observa em silêncio. Como se a tua morte não fosse nada, como se fosses uma pedra a cair na terra, água a cair sobre água.”