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Dois pesos, duas medidas... Uma fatura a pagar!

Como muito bem, e corajosamente, disse Guterres – não sem repudiar as atrocidades cometidas pelo Hamas – o 7 de outubro não nasceu do vácuo. Tudo isto não começou no dia 7 de outubro.

Teorias da Conspiração e a multipolaridade que aí vem...

Não sou lá muito dado a teorias da conspiração.

Dedico especial repúdio às recentes teorias negacionistas trumpistas e bolsonaristas, e as montanhas de fake news que as sustentam.

Não acredito nas teorias da conspiração, mas que las hay, las hay...

Em 22 de novembro de 1963 foi assassinado o Presidente dos EUA, John Fitzgerald Kennedy. Dois dias depois, foi assassinado o presumível assassino.

Andava eu nos primeiros anos do liceu e um colega de turma – que viria a ter uma distinta carreira, chegando a ser Presidente do Tribunal Constitucional –, “adivinhando” um dominó de assassinatos na terra do Tio Sam, com humor – humor negro, dado o choque da tragédia ainda muito fresca –, brincava: “O assassino do assassino do assassino do assassino do Presidente...”

Não obstante os relatórios oficiais, após estudos balísticos e teorias em parte não coincidentes com a versão oficial, é generalizado o sentimento de que muita coisa terá ficado no segredo dos deuses.

No dia 11 de setembro de 2001 – precisamente vinte e oito anos depois do golpe fascista no Chile, apoiado pelos EUA – aconteceu o atentado terrorista em solo americano, com destaque para o colapso das Torres Gémeas e o consequente elevado número de vítimas mortais.

Muito se questionou se o atentado, levado a cabo pela Al Qaeda, não terá beneficiado de vista grossa dos donos do império, sedentos de guerra, para a qual arranjaram as adequadas fake news: a de que o Iraque tinha contribuído para os atentados terroristas do 11 de setembro (veio a concluir-se que o ditador Saddam nem sequer tinha conexões com Osama bin Laden e os terroristas da Al Qaeda) e a mentira da posse de armas de destruição massiva, pelo Iraque.

Aos donos do mundo pouco interessa que a verdade acabe por vir ao de cima, centenas de milhar de vítimas depois. Interessa sim, no momento adequado, a indispensável criação, na comunidade internacional, de atmosfera favorável para os seus desígnios.

Em resultado do estrondoso fracasso, veem-se agora obrigados a questionar a bondade da cruzada, qual semente para ajudar a crescer o que viria a dar no Daesh, o qual protagonizou e ainda protagoniza o grau zero da barbárie...

O “Portugal dos pequeninos” teve os seus quinze segundos de glória quando, em bicos de pés, quis aparecer no retrato de família, prenunciador da tragédia, com Lajes em pano de fundo.

Descontando, obviamente, as de pendor esotérico, algumas teses do 11 de setembro podem, pois, não passar de teorias da conspiração. Ainda assim, muita gente terá ficado – com razão – com a perceção de que não se ficou a saber da missa a metade.

No dia 7 de outubro de 2023, em Israel, aconteceu o tão espetacular quanto bárbaro e hediondo ato terrorista praticado pelo Hamas.

Da forma mais bárbara, o Hamas pôs a Palestina “em cima da mesa”, numa demonstração de que só lhe resta a resistência armada. Israel teria, naturalmente, preferido a continuação do jogo das intifadas das fundas contra as armas da sua tropa...

Para além dos tenebrosos aspetos negativos, não só do 7 de outubro, é inegável que também existe no Hamas uma vertente de resistência palestiniana, que é, geralmente, sonegada por quem opta por ignorar a justeza da existência do Estado Palestiniano. Não deixando de ser verdade a vertente terrorista do Hamas, não é por acaso que a generalidade dos comentadores põe a ênfase exclusivamente nesta última vertente.

Certamente, não teria acontecido o 7 de outubro, se, ao longo de décadas, tivesse havido um mínimo de justiça e respeito pelo povo palestiniano, em vez do apartheid imposto por Israel. Os donos do mundo ditaram quem era o “povo eleito” para ocupar as terras da Palestina. Desde há décadas que o povo palestiniano tem sido escorraçado, roubado das suas casas e terras. O que fizeram sempre os donos do mundo? Assobiaram para o lado.

Como muito bem, e corajosamente, disse Guterres – não sem repudiar as atrocidades cometidas pelo Hamas – o 7 de outubro não nasceu do vácuo. Tudo isto não começou no dia 7 de outubro.

7 de outubro de 2023 – Inimaginável o falhanço dos serviços de segurança israelitas, tidos como os mais eficientes do mundo!

Errar é humano, bem sabemos. É verdade que, mesmo nos mais inexpugnáveis serviços pode haver falhas. Só que, quando acaba por se saber que esses serviços tinham sido avisados pela secreta egípcia de que algo se estava a preparar...

Mais, como é que a inteligência israelita não conseguiu detetar, mesmo ao lado da fronteira, a céu aberto, durante dois anos, com tanta vigilância dos satélites, campos de treino das milícias do Hamas? É de imaginar uma conversa assim entre duas altas patentes do Mossad, sobre os ditos campos de treino:

– Eh pá, ainda há dois anos, jogavam a bola, duas pedras a fazer de baliza!...

– Agora, brincam com parapentes...

– São muito modernos estes terroristas, eh, eh!...

– Deixa-os estar, enquanto se divertem não chateiam...

O Hamas teve, para a sua criação, o valioso contributo do poder em Israel, com o intuito de dividir a resistência palestiniana, para reinar. Bem pode dizer-se que o Hamas e a extrema-direita israelita se alimentam um do outro, qual condição sine qua non de sobrevivência de ambos!

Agora, a extrema-direita israelita mordeu o isco do Hamas. Juntou-se-lhe a fome (de vingança) com a vontade de comer (ainda mais território palestiniano). Que melhores ingredientes para a verdadeira espiral de sangue a que assistimos?

Dificilmente o prato da balança onde jazem milhares de inocentes palestinianos, metade crianças, consegue equilibrar o outro prato, que pesa a sobrevivência política do primeiro-ministro Benjamim Netanyahu (Bibi).

Sendo certo que o Hamas reclama a extinção de Israel, Bibi e comparsas aproveitam a ameaça para fingirem acreditar nela. Com tamanho poder bélico, ainda mais com a rede estadunidense por baixo, só alguns comentadores tolos acreditam que é a existência de Israel que está em causa. Não tanto tolos, apenas puxam a brasa a agendas próprias de alinhamentos que já vêm de longe.

Algum capital acumulado com a justa indignação provocada pela desumanidade do 7 de outubro, depressa se esvaziou perante uma comunidade internacional indignada com a espiral de morte, a grande maioria inocentes, provocada por Israel.

Os EUA, que nalgumas coisas são os primeiros, para as que mais urgem são os últimos, qual carro vassoura da História! Foi ou não foi assim com a condenação do apartheid na África do Sul?

Tem sido até à última a tolerância com a matança levada a cabo por Israel.

Aos olhos do mundo, vai, certamente, resultar a contradição que é haver dois pesos, duas medidas. Assim como dão vontade de rir – rir, não, em face do dramatismo de quem está a sofrer... – as preocupações de Putin para que se resolva diplomaticamente a questão do Médio Oriente, resultam igualmente hipócritas as preocupações de Biden com a proteção dos civis, na Palestina. O mundo pode ficar descansado, tantas são as recomendações de Biden a Israel para proteger os civis... Mais descansado pode ficar com a demonstração de “humanidade”, de partir o coração, da extrema-direita de Israel para com os bebés das incubadoras que agora promete pôr a salvo.

Com tantos bombardeamentos, pode resultar, a curto prazo, um enfraquecimento do Hamas. Resta saber se de cada Hamas morto, e, sobretudo, se de cada civil morto não vão nascer sementes de revolta a multiplicar. A proliferação do caldo de terror vamos, certamente, senti-la nas capitais europeias, num qualquer metro, paragem de autocarro ou centro comercial perto de nós.

A desproporcionadíssima matança de civis, justificada pela caça ao Hamas, não vai ser mais do que tiros nos pés de quem transpirava “bondade” relativamente à guerra na Ucrânia. Ainda que aceitando não ser exatamente a mesma coisa, com que coerência se pode protestar contra a invasão putinista da Ucrânia, com o consequente desrespeito pelos direitos humanos?

Os EUA, como, aliás, sempre tem acontecido, deram a mão a Israel.

Consequência: um mundo mais perigoso. Conseguiram com isso o afastamento dos países árabes ditos moderados – a maior parte só o são externamente, para, internamente, poderem subjugar o povo, sobretudo as mulheres.

É reconhecido o declínio do polícia do mundo, os EUA, com todo o cortejo de malfeitorias que o acompanha. Com o belo serviço agora prestado, os EUA não estão a fazer mais do que estender o tapete a autocracias e máfias que espreitam, em modo multipolaridade.

Se não pensarmos e agirmos, bem me parece que o mundo está perdido. Será que estamos condenados a sair do sal para nos metermos na salmoura?

Sobre o/a autor(a)

Professor aposentado
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