Dois bairros, duas histórias: cultura e memória a nível local

porMafalda Escada

19 de outubro 2021 - 9:01
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Portugal albergará, junto com a Letónia, a Capital Europeia da Cultura 2027. A capital portuguesa será escolhida no primeiro trimestre de 2022. Ironicamente, ano para o qual o OE apresentado pelo PS reserva apenas 0,4% para a cultura.

Portugal albergará, junto com a Letónia, a Capital Europeia da Cultura 2027. Dez cidades portuguesas, entre as quais Oeiras, são candidatas ao título. A capital portuguesa será escolhida no primeiro trimestre de 2022. Ironicamente, ano para o qual o Orçamento do Estado apresentado pelo PS reserva apenas 0,4% para a cultura; 0,25% se lhe retirarmos o financiamento da RTP.

A Comissão Europeia aponta quatro objetivos para esta iniciativa que começou em 1985: salientar a riqueza e a diversidade cultural na Europa, celebrar as características culturais partilhadas entre os europeus, aumentar o sentimento de pertença a uma área cultural comum, fomentar a contribuição da cultura para o desenvolvimento das cidades. A CE identifica também cinco oportunidades: regenerar as cidades e aumentar o seu perfil internacional, melhorar a imagem das cidades aos olhos dos seus próprios habitantes, trazer nova vida à cultura da cidade e aumento do turismo. Esta iniciativa parece, portanto, uma boa oportunidade para discutir como pode a política local ser política cultural e vice-versa.

Escrevo algumas notas sobre Oeiras que poderão eventualmente ser extrapoladas para outros contextos. Esta candidatura assenta em cinco eixos, sendo um deles “Oeiras, Capital das heranças culturais”. Neste eixo, é afirmado que “a conservação e reabilitação do edificado e do património móvel, a sua programação e acesso à fruição pública são elemento crítico de uma visão para uma cidade onde as artes, cultura e património desempenham um papel estruturante”. Este eixo propõe ainda “documentar e evidenciar as heranças imateriais da comunidade culturalmente plural residente em Oeiras”.1 É neste sentido que a Proposta de Deliberação da candidatura de Oeiras, apresentada por Isaltino Morais, subdivide as heranças culturais entre materiais e imateriais, listando-se, de um lado, e de outro, os objetos de intervenção política.2

Ao listar um elemento, a Câmara dignifica-o como objeto de política cultural, valoriza-o. Torna-se interessante comparar presenças e ausências, o que a Câmara pretende fazer para a frente e o que fez para trás. Interessante não apenas para Oeiras, mas porque identifica uma política elitista que exclui da “cultura” a pluralidade que diz valorizar, prática que não será exclusiva do concelho. Interessante, senão irónico, porque inúmeros outros elementos poderiam integrar as listas, de forma a tornar a candidatura verdadeiramente capaz de ir ao encontro dos quatro objetivos da Capital Europeia da Cultura.

Do lado das heranças imateriais, listam-se como objeto as tradições orais das diversas etnias residentes no concelho. Que ausências podemos encontrar? Pensemos no Bairro dos Navegadores, construído para alojar habitantes de bairros de barracas, onde Joice Veiga, habitante do bairro, procurou reconstituir a sua história. Numa “Exposição de Memórias”, Joice não viajou só da Pedreira dos Húngaros, em tempos o maior bairro de barracas da Área Metropolitana de Lisboa, para o Bairro dos Navegadores. Viajou de Cabo Verde a São Tomé, de São Tomé a Portugal, do Algarve e de Baleizão, “terra de Catarina Eufémia”, a Lisboa. Viagens mediadas pelas conversas com os seus vizinhos que compõem a pluralidade cultural que não chega à política do município. Na última vez que estive no bairro, uma senhora apontou para um mural e comentou qualquer coisa como: “Já viste isto? É muito bonito, mas qualquer dia desaparece. Com tanto artista no bairro, não percebo porque é que não pedem aos nossos jovens para pintar.” Joice também descreveu à Mensagem de Lisboa 3 “paisagens artísticas desenhadas nas paredes que os moradores não sabem quem desenhou – apesar de terem proposto artistas do bairro para esta obra”. Porque não se traduz a herança imaterial, pela mão de quem vive no concelho, numa futura herança material para quem lá viverá? Porque razão é uma fachada pintada com um retrato do Infante D.Henrique, rosto do colonialismo português, que nos recebe à entrada do bairro? Não seria a Capital Europeia da Cultura uma oportunidade para reparar uma política cultural apesar-das-pessoas?

A lista material tem como vantagem escapar à abstração. A concreticidade dos elementos que a compõem torna mais fácil a identificação das ausências de espaços que poderiam estar presentes. Compõem-na os habituais locais históricos (como se não o fossem todos os lugares): os Jardins e Palácio do Marquês de Pombal, a Quinta Real de Caxias, o Convento da Cartuxa, as fortificações marítimas e outros não tão óbvios, como o Estádio e Parque do Jamor. Ficam de fora patrimónios históricos que, de um ponto de vista elitista e pouco democrático, não são históricos, nem tampouco culturais. Vêm-me à memória as ruínas da indústria da Cruz-Quebrada/Dafundo. Vem-me à memória a antiga fábrica da Lusalite, onde chegaram a trabalhar mais de 700 pessoas. A sua demolição justificada dará lugar, não ao vazio, mas a uma escolha de classe, um projeto imobiliário de luxo já sob investigação por suspeitas de corrupção. Desvanece, entretanto, a herança material e imaterial daquele lugar: a herança dos e das operárias que naquela zona trabalharam, viveram e que deveria compor também ela o quadro cultural do concelho.

Vem-me ainda à memória o Bairro Clemente Vicente, bairro operário construído nos anos 20 que marca a transformação do contexto social e cultural daquela zona do concelho que, dos banhos veraneantes da Rainha D.Amélia, passou a contar com um exemplo entre poucos das vilas operárias de escala urbana da região de Lisboa.4 É “o maior e mais compacto conjunto” deste tipo de vila operária. 5 Enquanto, no concelho de Lisboa, as vilas operárias foram alvo de alguma forma de proteção e reabilitação, em Oeiras, este bairro é condenado ao esquecimento. Em 2012, um abaixo-assinado organizado pelos moradores pedia a intervenção para evitar derrocadas. Desde 2016 que o Laboratório Nacional de Engenharia Civil alerta para o mesmo perigo. Nesse ano, o Bloco dirigia já perguntas ao governo sobre o tema. Este mês, uma pessoa ficou ferida após desabamento do chão de uma casa. Preservar o Clemente Vicente não é apenas preservar edifícios construídos para alojar quem construiu este país, ou preservar o património que é herança cultural da classe trabalhadora. É preservar também as vidas de quem lá hoje vive sem rendimentos para se encarregar a si mesma da preservação da sua casa e da memória histórica do concelho. É especialmente aqui que se cruza a política local com a política cultural. Citando a Ordem dos Arquitectos: “(...) é um edifício a preservar e a reabilitar o mais urgentemente possível para que não se perca parte da história da cidade à custa de vidas humanas.” Não seria a preservação do Bairro Clemente Vicente também a documentação do património cultural do concelho?

O OE2022 torna mais que evidente o menosprezo da cultura por parte do governo. Mas o menosprezo pela cultura pode tomar outros contornos. Estes dois exemplos específicos do concelho de Oeiras poderão eventualmente ser encontrados, noutras formas, pelo país fora. Mostram-nos que os grandes debates podem ser encontrados de formas muito concretas um pouco por toda a parte e que, em todas essas partes, faz falta a esquerda sentada à mesa.

Notas:

4 Pereira, Nuno Teotónio. ‘Pátios e Vilas de Lisboa, 1870-1930: A Promoção Privada Do Alojamento Operário.’ Análise Social XXIX, no. 127 (1994): 509–24.

5 Ordem dos Arquitectos. ‘Bairro Clemente Vicente’. Dossiês Temáticos. Ordem dos Arquitectos, Secção Regional Sul, Dezembro 2019.

Mafalda Escada
Sobre o/a autor(a)

Mafalda Escada

Ativista anti-propinas, bolseira de investigação e dirigente do Bloco de Esquerda.
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