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Diz que é uma espécie de silly season

Este ano a silly season antecipou-se e veio mais cedo. Mas com uma diferença: a patetice difusa não residiu tanto na “ligeireza” do que era noticiado mas no modo atabalhoado como se reagiu ao “peso” da realidade.

Todos os anos, quando o Verão começa a bater forte e quem pode vai de férias, surge uma vaga de notícias leves e soporíferas. É a chamada silly season. Este ano a silly season antecipou-se e veio mais cedo. Veio, sobretudo, um nadinha mais silly do que é costume. Mas com uma diferença: a patetice difusa não residiu tanto na “ligeireza” do que era noticiado mas no modo atabalhoado como se reagiu ao “peso” da realidade.

Isso é muito evidente nos acontecimentos da última semana e meia. O casamento político que sustentava este governo esfrangalhou-se em direto. Vítor Gaspar – o ministro de confiança da Alemanha e dos credores, o funcionário com o relógio acertado pelo fuso horário de Bruxelas – deu à sola deixando notas críticas sobre a capacidade da receita escolhida vingar com sucesso. Para substituir Gaspar, Passos Coelho escolheu o seu braço-direito, Maria Luís Albuquerque, envolvida num escândalo financeiro ainda brumoso. Assombrada pela decisão de Portas em abandonar “irrevogavelmente” o governo, a tomada de posse da ministra transformou-se numa espécie de encenação fúnebre.

Diante da saída de Portas do governo, os comentadores acenaram pela enésima vez com o papão dos “mercados”, a direita dos interesses ficou aflita e uns quantos telefonemas internacionais colaram a cola cuspo a loiça partida. Reunificado o casal, Portas ficou responsável pelas pastas que verdadeiramente contam: a coordenação das políticas económicas, das relações com a troika e da reforma do Estado. O Público avançou na sexta-feira que o ex-ainda-ministro dos Negócios Estrangeiros andara nos dias anteriores em “viagens semiclandestinas por Lisboa” em busca de “uma sede digna” para o desempenho do seu novo cargo. Que é, como já toda a gente percebeu, o de co-primeiro-ministro.

Assim, e em poucos dias, as palavras “irrevogável”, “dissimulação”, “confiança” e “estabilidade” ganharam novos sentidos. Cavaco também deu a sua ajuda no esforço de ampliação semântica. Para dar “estabilidade” ao país, avançou com uma proposta de “compromisso de salvação nacional” que mantém o governo no limbo, com ministro demissionários no seu posto e pretende forçar a entrada do PS num navio afundado. Mais grave ainda: reconhecendo a gravidade da situação, estipula a necessidade de eleições antecipadas mas submete a necessária clarificação política a arranjos partidários prévios que garantam a manutenção das políticas de austeridade. No meio disto tudo, uma nota relativamente surpreendente: já nem Cavaco acredita que este governo tem condições de chegar ao fim da legislatura.

Mas que não se pense que o isolamento é total. No meio da derrocada, alguns acólitos, refugiados da onda de calor no Mosteiro dos Jerónimos, aproveitaram uma tomada de posse na igreja católica para aplaudirem de pé Cavaco e Passos Coelho. Uma imagem poderosa, a do aplauso, que diz muito sobre este governo e a sua base social de apoio: as elites tementes a Deus e o povo temente aos mercados. Menos afortunadas, as vozes que esta quinta-feira se manifestaram nas galerias do Parlamento tiveram um vigoroso puxão de orelhas da presidente da Assembleia da República, Assunção Esteves. Ameaçando fechar definitivamente as galerias, citou uma frase que Simone de Beauvoir terá proferido – “não podemos deixar que os nossos carrascos nos criem maus costumes” – ainda que, como é evidente, num contexto muito distinto. Louva-se o domínio do Citador mas o tiro saiu bastante torto. Como é sabido, os carrascos estão noutro lado.

Sobre o/a autor(a)

Historiador, doutorado em História, investigador do CES/UC.
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