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A ditadura do número e a crise

A quantificação é fundamental para criar hierarquias e legitimar a autoridade de quem exerce o poder de forma discricionária.

Nas sociedades capitalistas contemporâneas, a quantificação tornou-se quase um dogma religioso, de tão central que é nas escolhas que fazemos e nas políticas que implementamos. Os exemplos são múltiplos: avaliamos a qualidade de uma máquina fotográfica pela quantidade de megapixeis, avaliamos a qualidade de uma escola pela sua posição num ranking, planeamos as políticas ambientais de acordo com a quantidade de poluição desejada e chegamos mesmo ao ponto de reduzir o conceito de “boa vida” a um qualquer índice de qualidade de vida. Pelo caminho, tudo o que não é quantificável torna-se invisível.

A quantificação é fundamental para criar hierarquias e legitimar a autoridade de quem exerce o poder de forma discricionária pela aura de objectividade que atribui a decisões que, na realidade, são baseadas em concepções de ética e moral e influenciadas pela ideologia dominante. Assim, um governo pode usar os rankings para pôr professores/as a competir entre si, introduzindo na organização das escolas princípios mercantis, e argumentar que quem se opõe a esta política está contra a avaliação per se. Assim também são criados mercados ambientais para o carbono ou a biodiversidade, como se a natureza pudesse ser cortada em pedaços e comercializada como qualquer outra mercadoria. Todas estas operações são feitas de uma forma que aparece como sendo a-ideológica e a-moral, no âmbito de um esforço concertado para reduzir o alcance de potenciais críticas. Esta é a base da ditadura do número.

Mas a quantificação não é apenas um instrumento de dominação. Ao criar novas categorias e reconfigurar relações sociais, tem efeitos reais na forma como as nossas sociedades são organizadas. O melhor exemplo que podemos encontrar actualmente é o da crise iniciada em 2008, na medida em que encontramos na sua origem a criação de mercados financeiros baseados na quantificação da incerteza.

Uma das maiores lacunas do ensino da Economia hoje é a diferença entre risco e incerteza. Podemos falar de risco quando temos uma situação em que podemos atribuir uma probabilidade a qualquer acontecimento futuro possível. Quando temos incerteza, contudo, não conseguimos calcular as probabilidades de acontecimentos futuros, pelo que não temos qualquer forma de prever o que vai acontecer. Dando o exemplo de um óptimo artigo de Larry Lohmann1, a expressão “economia de casino” é inadequada para descrever os mercados financeiros, precisamente porque num casino sabemos sempre qual é a probabilidade de ganhar ou perder num jogo e é possível calcular os ganhos esperados de forma exacta – é por isso que nenhum casino corre o risco de falir.

Os especuladores dos mercados financeiros, assim como os economistas, consultores e quants que desenvolveram elaborados modelos para tentar prever o comportamento destes mercados, contudo, escolheram ignorar esta distinção. Como resultado, temos agências de rating a calcular o risco de cada fundo de investimento, como se fosse quantificável, e especuladores a decidir se compram ou vendem títulos baseados nestes ratings. Para um neo-liberal, tudo isto faz sentido: o mercado auto-regula-se, garante-se liquidez e o risco é alocado de forma eficiente. Quem vive no mundo real, contudo, já compreendeu que do que se trata é de desenvolver perigosos negócios de venda de ilusões.

Um exemplo particularmente ilustrativo desta loucura de quem acha que pode sacar da calculadora para determinar o risco de um activo pode ser encontrado com a história da equação de Black-Scholes. Em 1973, Fisher Black e Myron Scholes publicaram um artigo no qual desenvolviam um modelo que permitia prever a evolução de certos derivados num mercado financeiro. O modelo tornou-se extremamente popular, tendo estado inclusive na base da formação de novos instrumentos financeiros. Robert Merton desenvolveu este modelo posteriormente e veio a dividir com Scholes o chamado “Nobel da Economia”, em 1997 (Black não foi incluído porque já tinha falecido à data). Nesta altura, Merton e Scholes estavam no topo do mundo. Mas tinham cometido um erro fatal: aplicar o seu modelo à realidade.

Em 1994, Merton e Scholes criaram um fundo de investimento, tendo conseguido capitalizar a sua fama para obter mil milhões de dólares dos especuladores. O fundo foi muito bem sucedido nos primeiros anos, tendo registado um rendimento acima de 40%. Mas em 1998, com as crises asiática e russa, o fundo sofreu um pesado golpe tendo perdido 4.6 mil milhões de dólares em quatro meses. A falência do fundo mostrou de forma brutal as limitações de uma ideologia que insiste em ver os mercados financeiros como sendo domesticáveis pela força de modelos matemáticos.

Naturalmente que os especuladores não aprenderam as lições do desastre e em 2008 entramos numa crise financeira que levou à falência inúmeros fundos de investimento criados com base em complexos mecanismos de quantificação que falharam por completo no seu objectivo. Paradoxalmente, os instrumentos financeiros que permitiriam dominar a incerteza acabaram por criar novas fontes de incerteza. O capitalismo é assim, tem a sua forma de nos mostrar que não pode ser domado.

Sobre o/a autor(a)

Ricardo Coelho, economista, especializado em Economia Ecológica
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