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Direito ao descanso e dever de desconexão: o que está em causa

A utilização das novas tecnologias (como o telemóvel ou o e-mail) com vista a contatar os trabalhadores em permanência viola o respeito pelo tempo de descanso, agrava os fenómenos de esgotamento e burnout, põe em causa a vida privada, nomeadamente familiar.

1. O agendamento do Bloco de Esquerda sobre o respeito pelo tempo de trabalho, o respeito do direito ao descanso e o dever de desconexão profissional visa responder a um problema que está identificado: o número crescente de trabalhadores que veem o seu tempo de trabalho informalmente prolongado, o seu tempo pessoal invadido por solicitações profissionais e o seu tempo livre colonizado por uma hiperconetividade que é prejudicial sob múltiplos pontos de vista. A utilização das novas tecnologias (como o telemóvel ou o e-mail) com vista a contatar os trabalhadores em permanência viola o respeito pelo tempo de descanso, agrava os fenómenos de esgotamento e burnout, põe em causa a vida privada, nomeadamente familiar.

2. Para isso, entendemos que, além de reforçar a fiscalização, é preciso que a lei dê um sinal de proteção dos trabalhadores. Tal como o PEV e o PAN (e ao contrário do PSD e do PCP), o Bloco entende que é importante que haja uma alteração legislativa que sinalize que as novas tecnologias de informação e comunicação não podem ser utilizadas pelas empresas para invadirem o tempo de descanso e transformadas numa verdadeira "coleira electrónica".

3. De que modo o fazemos? Prevendo que o tempo de não trabalho deve ser um tempo de desconexão profissional. A lei já prevê que os trabalhadores têm o direito a desligar: não é preciso acrescentar nada na lei sobre esse aspeto. Mas além de os trabalhadores terem o direito a não estar ligados (a não responder a um mail ou não atender um telefonema do chefe), entendemos que é preciso acrescentar que as empresas têm o dever de desconexão, isto é, têm o dever de não contatar o trabalhador. Porque o simples facto de contatarem o trabalhador é um gesto de pressão e constrangimento, mesmo que os trabalhadores tenham o direito inalienável de não responder – e não tenham mesmo nenhuma obrigação de fazê-lo. O Bloco prevê ainda que se esse dever de desconexão por parte da empresa for violado, deve ser entendido como indício de assédio sobre o trabalhador. Por último, o Bloco quer que volte a ser obrigatório por lei o envio, pela empresa, dos horários de trabalho à ACT, facilitando assim a fiscalização. O projeto de lei do Bloco mereceu a oposição veemente dos patrões, em parecer escrito, o que é um bom indicador de que estamos a tocar num aspeto importante do atual abuso patronal que existe nesta matéria, que seria minorado pela alteração legislativa que propomos.

4. A proposta do PS vai em sentido contrário ao do Bloco. Porquê? Porque o PS prevê não um dever de desconexão por parte das empresas e o agravamento das respetivas sanções, mas sim dar cobertura normativa à invasão do tempo de descanso dos trabalhadores. Onde hoje é claro que os trabalhadores não têm nenhuma obrigação de responder às solicitações patronais fora do seu horário de trabalho, o PS quer regular esse tipo de contatos. Ao procurar regular o que hoje, sendo prática comum, a lei não aceita, o projeto do PS tem um efeito perverso: o de legitimar a conexão por parte das empresas, legalizando na prática essa incursão patronal pelo tempo de descanso. Ou seja, o que hoje pela lei deve ser um tempo de liberdade do trabalhador (aquele tempo em que não está subordinado à disciplina do empregador), passa a ser um tempo de liberdade condicional.

5. Mais grave ainda é o modo como o faz. Dirá o PS que essa regulação seria na prática melhor que a atual realidade, que é de reconhecida selvajaria, e sobretudo que ela estaria sujeita a acordo entre as partes por via da contratação coletiva. Acontece que nós sabemos em que moldes é feita a contratação coletiva (sendo possível que sindicatos pouco representativos subscrevam acordos logo a seguir estendidos a mais trabalhadores), mas sobretudo que o PS prevê uma norma ainda mais perversa, que é a de isso poder ser feito por regulamento interno da empresa. Ou seja, caso empregadores e trabalhadores não cheguem a acordo, a empresa pode definir, “ouvida a Comissão de Trabalhadores” (conhecemos bem o que significa substantivamente esta formalidade...), as situações em que pode solicitar o trabalhador fora do seu tempo de trabalho. Ora, o regulamento interno é a expressão do poder empresarial. Colocar essa possibilidade é desde logo colocar uma pressão sobre a negociação que é, na prática, uma espada apontada ao peito dos trabalhadores.

Por tudo isto, a proposta do PS, a manter-se tal como está, não reforça mas fragiliza o direito ao descanso dos trabalhadores, e só pode merecer a oposição do Bloco e o seu inequívoco voto contra.

Sobre o/a autor(a)

Dirigente do Bloco de Esquerda, sociólogo.
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