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Deve-se levar a sério o que não quer ser sério?

Há que simplesmente tratar Ventura como o que ele é, ou seja, como faria Natália Correia, notando que se trata de um emproado que quer fazer carreira deitando lama para todo o lado e que só vale 1% do eleitorado.

Lembra-se do poema de Natália Correia sobre o ilustre deputado Morgado, num dos primeiros debates parlamentares sobre o aborto? De certeza que sim. Mas repare: não se lembra de mais nada, pois não há nada mais que registar. Foi ela quem ditou a sentença, ele quem a mereceu, e essa ficou para todo o sempre a história desse debate. É que não há melhor forma de responder ao que não é sério do que tratá-lo como o que é realmente. Vem isto a propósito do alarme que vai por aí por causa do Ventura, e para sugerir que o modo de sarcasmo em vez do modo de pânico é por hoje a resposta mais forte no espaço da opinião pública. Por isso, trago um conselho, se me permite: antes de se atirar contra alguma frase venturista ou de levantar a sua indignação contra o que ele vai acirrar todos os dias, pergunte-se o que diria Natália Correia, que poema leria ou de que imagem riria. Seja Natália Correia.

Porque, ressalvadas as diferenças dos tempos, não há motivo para demasiada surpresa. Se havia uma hipótese de a extrema-direita pôr o pé na porta e entrar, era esta, com um doutor de leis, vindo de um dos grandes partidos e em que já foi candidato a alguma coisa, alcandorado ao seu módico de fama por uma televisão em que exerce o mister de comentador de futebol, função que algumas vezes consegue ser a que mais se aproxima do porradismo que agora o elegeu. A fórmula é conhecida, é a da cultura tribal, que faz o sucesso eleitoral de extremas-direitas em diversas partes do mundo, intoxicando a política desde que o ressentimento possa grassar, seja em microescala, como para já entre nós, seja com vocação maioritária, como noutros países em que não houve uma esquerda que disputasse a representação nacional. O seu sucesso depende, portanto, da amplitude dessa cultura de medo.

Não há então motivo para espanto, mas nem muito menos para pânico. Ventura sempre foi o que tinha de ser: passista quando necessário, candidato e devoto do PSD dos quatro costados, manobrador nas disputas da sucessão e até santanista, uns tempos favorável ao sistema ou depois antissistema, consoante se ajeitava. O fato do dia foi fazendo a cor do cavalheiro. Ora, se o que o distingue não é a ideia mas a conveniência, a primeira consequência é que o debate com Ventura não é ideológico, nem sequer de ideias, ele não usa disso. É só sobre medos. Enfrentem-se os medos e não sobra Ventura. Deixem-se os medos grassar, acrescente-se uma pitada de riscos económicos e de laivos de austeridade, para mais com uma União Europeia que parece querer esfrangalhar-se, e teremos as extremas-direitas a crescer, seja Ventura ou seja o próximo aventureiro. Só uma política social determinada e obsessiva em alcançar resultados pode evitar a degradação da vida democrática, com pão, saúde e segurança na vida das pessoas em vez de ódios e sustos.

Segunda consequência: se nada o preocupa quanto à apresentação de propostas para o país, se lhe é indiferente o que acontece à nossa gente, é só o estilo que fabrica o Ventura. O estilo é o homem: tonitruante, gritante, apontante, tudo à futebol rasteiro. Ele precisa de frases fáceis para não se notar a tropa maltrapilha que marcha com ele; precisa de acusar, para não se saber que se acompanha de quem foi condenado por crime cometido; precisa de gritar, pois não quer ser ouvido, só quer amedrontar. É portanto ao estilo que se deve responder e pode-se fazê-lo duas formas. A primeira é a que ele deseja, é levá-lo à letra, mostrando receio dele. Seguindo esse caminho, haveria que dramatizar, adivinhando que cada aleivosia venha a ser tremenda em consequências, que cada ação seja uma viragem assustadora do destino pátrio, ou ainda que cada manobra venturista abra as portas ao mundo das trevas. Assim atemorizada, a esquerda tornar-se-ia uma espécie de imagem do espelho de Ventura, respondendo a cada dichote e correndo para a rua a cada meneio. Tudo ela por ela, essa é a primeira resposta possível, o tal modo pânico. Ora, entre Ventura engravatado no Parlamento e milícias a desfilarem na rua para atacarem as lojas dos judeus ou dos nepaleses ainda vai uma grande distância. Só que há gente apavorada e ele está à cata da cooperação desses ingénuos, sabe que não será nada sem esse efeito de ampliação, precisa do medo acerca do medo, já que ainda lhe falta criar medo. No negócio de Ventura, só há estilo e só a exuberância conta, mas são precisos dois para dançar este tango. Por isso, ele procura parceiros e, se alguém se oferece, pensando que assim o seu partido reluz, ganha muitos likes no Facebook e se exibe como o herói revolucionário que faz peito ao herói reacionário Ventura, estará a fazer um favor à extrema-direita e a oferecer-lhe o que ela necessita. Contra quem se comporta como um truão, oferecer-se-ia um antifascismo declarativo. Só que tal nervosismo seria uma irresponsabilidade.

Há outra resposta e é a que hoje é forte e eficaz (noutros tempos outros remédios poderão ser requisitados para a resposta democrática, mas ainda não há por aí milícias à solta, nem Mussolini ou Salazar renasceram, pois não?). Agora é simplesmente tratá-lo como o que ele é, ou seja, como faria Natália Correia, notando que se trata de um emproado que quer fazer carreira deitando lama para todo o lado e que só vale 1% do eleitorado. Para os frequentadores das redes sociais, isto significa não partilhar tiroteio, não clicar antes de pensar, não ajudar a espalhar o ódio e, em vez de responder a cada provocação, que será o dia a dia, perguntar se vale a pena comentar e abundar no que nunca nos ocuparia em qualquer segundo da nossa vida. E, mais importante, se responder, fazê-lo da única forma que interessa e que é merecida, com humor crítico, à Natália, com o afago do sarcasmo, com fotomontagens, memes, poemas, músicas, anedotas, trocadilhos, contos, adivinhas.

Quanto ao espaço da vida social, o que afinal importa mais do que tudo, a democracia mede forças contra a direita e a sua extrema no salário, na pensão, na escola dos filhos, na renda de casa, nas comissões bancárias, no combate à corrupção, na recusa do racismo. Mas não foi sempre assim?

Artigo publicado no jornal “Expresso” a 19 de outubro de 2019

Sobre o/a autor(a)

Professor universitário. Ativista do Bloco de Esquerda.
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