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Desconectar os patrões

Por insistência do Bloco nas negociações com o PS e no debate em especialidade, caíram as propostas equívocas sobre o “direito a desligar” e ficou o dever de desconexão patronal. Valeu a pena!

Nos últimos dias, Portugal foi notícia na imprensa internacional. Por boas razões: a lei que proíbe os patrões de contactarem os trabalhadores durante o tempo de descanso. A norte-americana “Vice” sublinhava que “Portugal tornou ilegal que o seu patrão lhe envie mensagens depois do horário de trabalho”. A “Yahoo Finance” fazia notícia com o título “Um simples erro que pode pôr o seu patrão em apuros”. Nos jornais britânicos, como o The Guardian, a medida também foi destacada.

Este debate começou, em Portugal, em 2017. Em junho desse ano, o Bloco apresentou, pela primeira vez, um projeto para consagrar no Código do Trabalho o dever de desconexão por parte das empresas. A ideia era que a lei desse um sinal forte sobre uma dinâmica instalada de intensificação dos ritmos de trabalho e de prolongamento informal dos horários através de uma espécie de solicitação permanente dos trabalhadores. Além de significar uma invasão do tempo de descanso e uma colonização do tempo livre, esta hiperconetividade profissional agrava os fenómenos de esgotamento e perturba a vida privada e familiar.

Em outubro de 2017, à proposta do Bloco juntaram-se outros projetos de lei. Mas nenhum previa este dever de desconexão e antes um “direito a desligar” que, além de colocar o ónus no trabalhador, ou se limitava a afirmar uma evidência que já resulta da lei (obviamente o trabalhador tem o direito a desligar o seu mail e a não atender chamadas no seu tempo de descanso), ou criava um regime muito pior do que o que existia. Porquê? Porque ao querer regular um tal direito do trabalhador, que a lei já pressupõe, estes projetos (PAN e PS) tinham um efeito perverso. O que a lei já consagrava como um tempo de liberdade do trabalhador (o tempo de descanso, período de não trabalho e de não subordinação ao empregador), passaria a ser um tempo de liberdade condicional, com as empresas (na proposta do PS) a poderem definir por regulamento interno (ou seja, através de um instrumento que pode ser imposto unilateralmente) as situações em que estavam legitimadas a solicitar o trabalhador fora do seu tempo de trabalho. Assim, acabaria por legalizar-se na prática essa incursão patronal pelo tempo de descanso.

Essas propostas não passaram (e ainda bem!) e a do Bloco também foi chumbada com os votos contra do PS, PSD e CDS-PP. Ficou tudo na mesma. Mas a ideia do “dever de desconexão” foi fazendo o seu caminho. Se é certo que os trabalhadores sempre tiveram o direito a não responder a um mail ou a não atender um telefonema do chefe durante o seu período de descanso, e se é certo que podem existir situações excecionais, de força maior, que aliás já são enquadradas pela lei (no limite: há um incêndio na empresa, ou o sistema informático foi atacado e só o trabalhador tem a chave!), o simples facto de os trabalhadores receberem reiteradamente, fora do seu horário, contactos por parte da empresa é já um gesto de constrangimento e uma pressão, transferindo para eles o ónus de não atender ou acabando por fazer com que o trabalhador acabe por ler o mail e ocupe a cabeça, nem que seja apenas para perceber de que se trata. Daí a importância de perspetivar o problema do “desligamento” por este lado: o dever de não conexão por parte dos empregadores.

Foi isso que aconteceu agora, à boleia da legislação sobre o teletrabalho (através da qual passámos também a ter um bom regime de teletrabalho, com mais proteção e direitos para quem trabalha).

A nova norma sobre desconexão, que será inscrita no Código do Trabalho, consagra o dever dos patrões se absterem de contactar os trabalhadores. E vale para todos, independentemente de serem de micro ou grandes empresas, e não apenas para quem esteja em teletrabalho. Mais uma vez, no debate, as opiniões estiveram divididas. Nos projetos originais, PS, CDS e PAN voltaram a insistir numa formulação perigosa sobre um suposto “direito a desligar” por parte dos trabalhadores. O Bloco insistiu no dever de desconexão das empresas, aplicável a todos os regimes de trabalho. No contexto de uma negociação com o PS, e depois no chamado “debate na especialidade”, caíram as propostas equívocas sobre o “direito a desligar” e ficou o dever de desconexão patronal. Valeu a pena!

A lei, já se sabe, não muda automaticamente as práticas sociais nem acaba, por si só, com uma cultura laboral de ligação permanente. Há muito a fazer para garantir mais respeito pelos tempos de trabalho e para ganharmos mais tempo para nós. Os abusos nos horários têm muitas dimensões, desde as horas extra não remuneradas às interpretações abusivas da figura legal da “isenção de horário” ou do “banco de horas”, por exemplo. Mas que a nossa lei dê este sinal, ao que parece inédito em termos internacionais, é de grande significado político e jurídico. E faz com que os trabalhadores tenham do seu lado uma arma mais para esgrimirem na luta pelo direito a viver para além do trabalho.


Artigo publicado no Expresso a 13 de novembro de 2021

Sobre o/a autor(a)

Dirigente do Bloco de Esquerda, sociólogo.
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