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Democracia em Vertigem

O documentário de Petra Costa sobre os anos do golpe e a ascensão de Bolsonaro no Brasil é um dos nomeados para os Óscares na categoria de Melhor Documentário.

Depois de ter sido indicado para vários prémios e ter recebido a aclamação da crítica internacional, Democracia em Vertigem, o documentário de Petra Costa sobre os anos do golpe e a ascensão de Bolsonaro no Brasil, é um dos nomeados para os Óscares na categoria de Melhor Documentário.

Democracia em Vertigem é um documentário pessoal e é por isso que é absolutamente honesto. Petra Costa aproxima e afasta o foco com uma destreza notável, mostra-nos Brasília vista de cima e Lula visto de perto, relata todos os factos como os vimos sucederem-se nas notícias do telejornal e revela a intimidade a que nunca teríamos acesso sem ser por ela.

É a sua lente, claro, todos os filmes têm uma. Mas, em última instância, é a voz que Petra empresta à narração que dá ao filme toda a carga individual. Este documentário não é pessoal por estar ficcionado, é pessoal porque transmite a angústia e a inquietação de quem vê a democracia do seu país a abanar como uma construção frágil no meio de um tremor de terra. O New York Times disse que esta era a visão de quem olha para o Brasil com o coração partido.

“Eu e a democracia brasileira temos quase a mesma idade. Eu achava que nos nossos 30 e poucos anos, estaríamos ambas a pisar em terra firme”. A geração de Petra Costa tem demasiada memória. Nasceu nos últimos anos de uma violenta ditadura, lambeu as feridas com maior facilidade do que os seus pais, entrou na vida adulta com a euforia da primeira eleição de Lula. Viu 26 milhões de pessoas a saírem da pobreza e o Brasil a entrar na rota dos astros da geopolítica internacional.

“Até ao infinito e mais além” era sentimento geral. Apesar das dificuldades, das profundas desigualdades, de todos os problemas que o país já tinha e continua a ter – violência, corrupção, exclusão –, a confiança de uma geração na solidez da sua democracia pode ser de uma inabalável ingenuidade. Este filme também é sobre a vertigem de quem achava que tinha os pés no chão mas descobre que, afinal, está em queda.

Encontrar uma explicação é pôr fim à vertigem. É isso que o filme procura na revisão dos acontecimentos, um fio condutor que explique como é que 30 anos de democracia desembocam num golpe contra uma Presidente eleita, Dilma Rousseff, e na prisão política do Presidente mais popular (em ambos os significados) da história brasileira. Como é que tudo acaba na eleição de Bolsonaro e num governo saudosista do fascismo que todos os dias ataca direitos e corrompe as liberdades do povo?

Não acaba. Este filme também é pessoal porque é militante de um dos lados da história, o que não o torna menos verdadeiro, sobretudo se pensarmos que é o lado certo. “Numa época em que a extrema-direita está se espalhando como uma epidemia, esperamos que esse filme possa nos ajudar a entender como é crucial proteger nossas democracias”, disse Petra Costa ao receber a notícia da nomeação para os Óscares1. Este é um filme de quem não desiste.

Ao escolher narrar o seu próprio filme em inglês, versão que saiu ao mesmo tempo que a original em português, Petra lançou os dados para a projeção internacional que culminou nesta nomeação. Valeu muito a pena. Se o documentário vive de ser a sua voz sobre o Brasil, é por ela que todos devem ouvir a explicação que já lá estava desde início, mas que Petra só nos conta no final: “Somos uma República de famílias. Umas controlam a mídia, outras os bancos. Elas possuem a areia, o cimento, a pedra e o ferro. E, de vez em quando, acontece de elas se cansarem da democracia, do Estado de Direito.”

Artigo publicado no jornal “I” a 16 de janeiro de 2020


Nota:

1 A reação furiosa de Bolsonaro à nomeação de Democracia em Vertigem não ficará para a História, embora valha a pena referir que Petra Costa a considerou como “ser nomeada uma segunda vez”.

Sobre o/a autor(a)

Deputada e dirigente do Bloco de Esquerda, licenciada em relações internacionais.
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