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Defender a democracia contra a exceção

O grande desafio é impedir que a democracia se esvazie nesta exceção-como-regra. E isso passa por não permitir que o primado dos direitos de todos seja isso mesmo, primado e não luxo.

Desde 18 de março, sucederam-se as declarações do estado de emergência. Perdi-lhes já a conta. O parlamento tem sido um barómetro dos ecos que este recurso à segunda figura mais grave da excecionalidade constitucional (só superada pelo estado de sítio) tem provocado. E há duas notas importantes que saltam dos debates parlamentares sobre o estado de emergência.

A primeira é que está claro desde o início que a figura do estado de emergência foi pensada – e regulada em 1986 – para contextos de excecionalidade que não aquele que agora o justifica. Portugal não tem legislação sobre emergência sanitária que permita combinar a destreza de medidas de limitação de direitos pelo Governo com uma efetiva fiscalização parlamentar. Ora, se, em contextos excecionais, a propensão para o abuso por parte dos poderes públicos é maior e beneficia de apoio social alargado, é essencial que a democracia se proteja desses riscos, aplicando a lei que melhor o permite. A segunda nota é que o confinamento e outras restrições de direitos, se se aplicam a todos, têm consequências mais gravosas em quem é mais frágil social e economicamente. É por isso que, em todos os debates sobre o estado de emergência, há quem vinque que decretar confinamento sem decretar medidas de apoio robustas é penalizar duplamente quem tem menos.

Mas há uma nota adicional que não tem estado presente nos debates parlamentares sobre o estado de emergência. A pandemia veio agravar uma tendência que lhe era anterior, no sentido da afirmação de uma normatividade de exceção, de um direito de emergência composto por intervenções restritivas dos direitos fundamentais. Algo que vai muito para lá da circunstância da presente pandemia e que tende a afirmar-se com frequência crescente. As crises financeiras, a crise climática, as crises sanitárias, isolada ou agregadamente, são expressões de que este é um tempo em que o estado de exceção tende a transformar-se na regra, correspondendo assim à consideração da crise não como uma turbulência entre duas normalidades, mas como a nova normalidade.

O grande desafio é impedir que a democracia se esvazie nesta exceção-como-regra. E isso passa por não permitir que o primado dos direitos de todos seja isso mesmo, primado e não luxo, e pela rejeição da sobreposição da tecnocracia (sanitária agora, outra coisa qualquer depois) ao primado da política democrática.

A defesa da democracia e uma exigência a tempo inteiro. Em tempos de excecionalidade, é ainda mais.

Artigo publicado no diário “As Beiras” a 25 de janeiro de2021

Sobre o/a autor(a)

Professor Universitário. Dirigente do Bloco de Esquerda
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