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A decisão de António Costa

Sem ganhos de causa em matérias fundamentais, como as leis do trabalho ou as regras de organização do SNS, e perante um Orçamento tão poucochinho, António Costa conta apenas com a ameaça da crise política para tentar chantagear o Bloco e o PCP.

Antes das eleições de 2019, o PS admitiu que desejava governar sem "empecilhos" à sua esquerda. Depois de ter falhado o objetivo da maioria absoluta, António Costa recusou um acordo para a legislatura com o Bloco de Esquerda. Fê-lo por duas razões. Em primeiro lugar porque preferia negociações ocasionais, "à peça", dependentes de maiorias conjunturais. Em segundo lugar porque rejeitava reconsiderar o tema da legislação laboral.

Ficou claro nessa altura, e mais ainda desde então, que a preocupação do PS não é a estabilidade da governação, mas o desgaste dos partidos à esquerda. Sem um acordo para enquadrar as negociações, à semelhança do que aconteceu na anterior legislatura, o Governo recusa-se a ir além de medidas pontuais, que muitas vezes ficam por cumprir. É o caso do estatuto do cuidador informal. Em 2020, por acordo, foram inscritos 30 milhões de euros para trinta projetos-piloto. Gastaram-se 206 mil. Em 2021 os 30 milhões regressaram, mas a execução ficou-se pelos 700 mil euros. Em 2022 o Governo promete alargar os projetos que nunca pôs em prática a todo o país, e orçamenta os mesmos 30 milhões. Como confiar?

Sem ganhos de causa em matérias fundamentais, como as leis do trabalho ou as regras de organização do SNS, e perante um Orçamento tão poucochinho, António Costa conta apenas com a ameaça da crise política para tentar chantagear o Bloco e o PCP. Esta não é a primeira vez que o primeiro-ministro cede à tentação de resolver um problema político pela chantagem da demissão, mas é a mais evidente. Até porque, como se entende, o poder de fazer ou não um acordo para o Orçamento de 2022 depende exclusivamente da sua vontade.

O Bloco apresentou ao Governo nove medidas: 1) contratação e exclusividade dos profissionais de saúde; 2) criação da carreira de técnico auxiliar de saúde; 3) recálculo das pensões das longas carreiras contributivas, tão prejudicadas pelas regras que vigoraram entre 2014 e 2018; 4) fim de uma parte da penalização para quem se reforma com mais de 60 anos e 40 anos de descontos; 5) fim da caducidade da contratação coletiva; 6) reposição dos dias de férias; 7) reposição do valor das horas extraordinárias; 8) reposição da indemnização por despedimento; 9) reposição do princípio do tratamento mais favorável.

O país conhece bem estas propostas, e o Governo também, há muito. Ainda assim, nenhuma destas matérias foi incluída no Orçamento ou mereceu resposta por parte do PS. Já depois da apresentação da lei orçamental, foram divulgadas publicamente duas propostas destinadas a criar confusão: uma que cria um mecanismo para manter a caducidade da contratação coletiva que o Bloco quer eliminar, e outra que pretende impor um regime muito limitado de exclusividade e que até já existe.

António Costa pode achar que ganha sempre. Ou submete os partidos à esquerda numa negociação sem cedências ou culpá-los-á por uma crise política que ninguém deseja. A decisão é sua. Da parte do Bloco, o país sabe com o que conta. Enfrentamos as chantagens, decidimos sobre soluções concretas.

Artigo publicado no “Jornal de Notícias” a 19 de outubro de 2021

Sobre o/a autor(a)

Deputada. Dirigente do Bloco de Esquerda. Economista.
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