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Dar para o peditório

Um ovo de Páscoa sem octanas a quem tentar compreender a vertigem com que milhares de depósitos semicheios se precipitaram para bombas de combustível nos últimos dias. Uma espécie de caça ao tesouro, sem (es)folar.

O atraso com que o Governo chegou à questão, aparentemente tão surpreendido como o cidadão comum, não pode justificar tudo. Independentemente das razões que impelem os motoristas de transporte de matérias perigosas a exercer o legítimo direito à greve, fica a imagem de um país sob a ameaça de paralisação súbita e iminente pela mão da cada vez mais forte disrupção dos tradicionais sindicatos e da contratação colectiva. Enquanto os acordos à esquerda procuram reverter algumas das mudanças da legislação laboral introduzidas nos tempos da troika, assistimos a uma velha e a uma nova Direita que, ao mesmo tempo que vocifera contra o Estado, exige mais rápido intervencionismo estatal ao sabor da sua habitual demagogia.

É maior a incerteza sobre a natureza destes movimentos grevistas do que sobre as habituais tropas de arrasto movidas a qualquer combustível. As restrições à Lei da Greve podem estar a ser moldadas com colete amarelo vestido. Ainda que seja difícil conceber uma requisição civil com os serviços mínimos inicialmente circunscritos a Lisboa e Porto, mesmo para um país mergulhado num roubo de identidade que o centralismo permanentemente reforça. Este sinal de falta de coesão soa a toque de finados. É o país dividido entre gente e pedra, entre privilegiados e supérfluos, carne de cidade ou para canhão no tempo em que se começa a marinar, lentamente, o corpo de Deus.

O eventual cansaço de alguns eleitores relativamente aos mesmos peditórios aconselhava prudência e atenção a coletes reflectores. Como sinais de aviso ao tráfico partidário, o advento de novos partidos à direita do habitual espectro político, ameaça estremecer a governação particular de Rui Rio e Assunção Cristas. A fuga para a frente sente-se pela movimentação táctica do CDS, a radicalizar-se demagogicamente o mais que consegue. Já o PSD, a procurar o Graal do Bloco Central, assim haja condições para Marcelo lhe sentir o gosto. As mais recentes sondagens para as eleições europeias mostram que Aliança, Partido Liberal e Chega, cada um no seu galho próprio, são mais visíveis em outdoors do que em votação popular. Eis a proverbial dificuldade em perceber como alguns peditórios são tão bem-sucedidos. Doações a quem doer. A nobreza da massa acionista é infinitamente reveladora e muito mais intervencionista do que o Estado.

Artigo publicado no “Jornal de Notícias” a 19 de abril de 2019

Sobre o/a autor(a)

Músico e jurista. Escreve com a grafia anterior ao acordo ortográfico de 1990.
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