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Cultura a débito: Orçamento de Estado para a Cultura 2016 e mais além

Entre as propostas do atual Ministério e do anterior Secretário de Estado da Cultura, há certamente boas intenções e ideias. Mas muitas interrogações ficam por responder com este novo Ministério e orçamento.

Será preciso sublinhar que “problematizar a cultura” não implica defender a “incultura” ou a “barbárie”?
José A. Bragança de Miranda1

A crise da política cultural reflete-se nas diversas escalas geográficas, desde a mais global visada pelo Orçamento de Estado da Cultura até às políticas de proximidade dos municípios. Do lado do Estado central e local a tendência dos últimos anos têm sido a de entender – erroneamente - o “cultural” como campo neutro, isento de agonismos e desligado das formas do poder vigente e das várias dominações socioculturais (austeridade, secretismo, desinformação, degradação ambiental, precariedade, etc.), como se os objetos culturais não fossem portadores de uma certa definição da realidade ou fossem isentos da indução de atitudes, mentalidades e comportamentos. Deste modo valoriza-se a higienização mercantil da cultura – o equivalente à cosmética -, centrada nos mecanismos da oferta e da procura como qualquer outra mercadoria fetiche, ou seja, como emanação do mercado do ócio numa “sociedade do conhecimento”, afinal sem tempo-livre. Esta visão consensual da cultura objetivada acaba por desprezar o mais importante e a finalidade última das políticas culturais, a cultura subjectivada, i.e., as formações mentais e os habitus que favorecem as sociabilidades e a individuação crítica e criativa.

O que se constata no quotidiano é um fechamento do horizonte da cidade e da cidadania crítica e criativa, uma vez que sem recursos, sem mecanismos e processos facilitadores providos pela administração pública local e sem instituições culturais locais focadas num serviço público de suporte ao desenvolvimento autónomo dos indivíduos e dos grupos sociais

A cultura, na boca dos governantes, é usualmente consignada como elemento identitário dos “portugueses”, fortalecendo-se constantemente a função de representação e reprodução sociocultural (história, tradições, património, valores,...), diminuindo-se a função produtiva das expressões e da sua diversidade cultural. Bem sabemos que a retórica da inovação e da criatividade - mormente por via da ideologia neoliberal das “classes criativas” - está inscrita em diversos programas eleitorais, mas o que se constata no quotidiano é um fechamento do horizonte da cidade e da cidadania crítica e criativa, uma vez que sem recursos, sem mecanismos e processos facilitadores providos pela administração pública local (cujo papel deveria ser exatamente o de prover os meios necessários à sustentação da sociedade civil) e sem instituições culturais locais focadas num serviço público de suporte ao desenvolvimento autónomo dos indivíduos e dos grupos sociais. Resta portanto o espetáculo, a “oferta cultural” de melhor ou pior qualidade e pertinência, que os “consumidores” culturais têm ao seu dispor, numa lógica de mercado livre (empresas culturais) ou de mercado assistido (entidades sem fins lucrativos ou do Estado), quando existirem subvenções públicas dignas.

A oferta/programação cultural dos equipamentos públicos de cultura está igualmente sob efeito da lei da concorrência e da atração, pelo que, no caso das grandes cidades - com equipamentos melhor dotados e produção de grandes eventos, exercem influência na atração de espectadores/as oriundos das pequenas e médias cidades, facto visível nos rácios (Espectadores/as por habitante) fornecidos pelo INE. O que isto significa é que, sem uma filosofia de programação cultural participada e ancorada no território local (pessoas), capaz de gerar “sentimentos de pertença”, diversidade de fluxos e o despertar do “génio do lugar”, muitas destas cidades médias e pequenas continuam a ser meros satélites e dormitórios urbanos (cidades zombie), apesar da oferta cultural de fim-de-semana ou da sazonalidade festiva, a qual, apesar das exceções, não passa de pacotes de entretenimento arbitrário. Mas isto não nos pode espantar, porque no fundo as políticas que visam pretensiosamente educar o gosto da cidadania são meras extensões do exercício de poder e controlo. Focault designaria-as como biopoder e governamentalidade; Raymond Williams e Gramsci viriam nelas formas de ideologia e hegemonia dominante que visam cristalizar o consenso social em torno de estruturas do sentimento e da afeção.

Quanto aos números orçamentados pelo governo para a cultura - avançados pela “Nota Explicativa” do Ministério da Cultura - salienta-se o estranho exercício de comparar o orçamento executado de 2015 com a dotação inicial para 2016. Mas de facto, quanto à quantificação do financiamento não há muito a dizer, é o próprio Ministro da Cultura quem resume, assim: “globalmente estaremos, em 2016, com uma orçamentação inferior em 2,9 M €uros relativamente ao exercício orçamental de 2015”. Em suma, a cultura voltou a ter Ministério, mas continua sem orçamento e mantém o subfinanciamento que degrada os serviços públicos culturais2, cujo nível se mantém nos miseráveis 0,1% do Orçamento Geral do Estado, longe portanto do mínimo exigido de 1%. A tendência acentuada de decrescimento do orçamento para a cultura não começou ontem, mas vem desde 2002:

Previamente já se havia entretanto gerado a confusão na comunicação social acerca da inclusão do orçamento – designadamente da despesa - da RTP, que afinal, como se sabe, é um mero formalismo, uma vez que grande parte do financiamento da RTP é obtido através da Contribuição Áudio Visual (CAV). No debate organizado pelo Bloco de Esquerda, António Pinto Ribeiro propunha partir de raiz de um orçamento zero para a cultura, uma ideia aliás já apresentada em 2010 pelo Bloco para que Orçamento do Estado passe a ser elaborado como um orçamento de base zero. A ideia é pertinente, mas a complexidade e o tempo necessário para a sua execução dificultam concretizá-la. O deputado do Bloco de Esquerda, Jorge Campos, irá propor em sede parlamentar um Plano de Literacia Visual essencialmente destinado a jovens.

Nem todos os problemas intrínsecos à esfera cultural, é certo, têm origem na falta de financiamento, as Câmaras Municipais investem cerca de três vezes mais do que o Estado central (em 2014 as Câmaras Municipais afetaram 353,4 milhões de euros às atividades culturais e criativas3) e nem por isso, em geral - salvo exceções -, conseguem corresponder às demandas da democracia cultural participativa, ou, como diz Nicolás Barbieri4 da necessidade de se passar de um paradigma das políticas culturais do acesso para o das políticas do comum, ao qual acrescentamos a dimensão do direito à cidade, uma vez que o fazer cultura é sincrónico com o fazer cidade5: “(…) pensar sobre o significado da cultura como um processo político significa pensar nela como um processo de confrontos que ocorrem justamente porque participamos em contextos comuns, e porque imaginamos aquilo que partilhamos.” (idem, p. 31).

Os governantes locais, com a pasta da cultura, produzem e convivem com contradições indefensáveis no âmbito da política cultural, por um lado parecem ignorar a tendência de hipersegmentação das sociedades contemporâneas e o potencial produtivo que os novos media vieram fornecer aos cidadãos nos vários domínios da cultura, das artes, do conhecimento e da capacidade de intervenção cívica. Por outro, assumem-se como autênticos programadores culturais dos municípios e como difusores legítimos da “boa qualidade” das práticas artísticas6. Neste caso, trata-se até de verificar a anti-constitucionalidade desta tipologia de políticas fundamentadas na instrumentalização da “excelência artística” e da democratização cultural (paradigma das políticas oriundas de André Malraux na década de 1960), pois, como diz a Constituição da República, Artº 43º, alinea 2.: “O Estado não pode programar a educação e a cultura segundo quaisquer directrizes filosóficas, estéticas, políticas, ideológicas ou religiosas”.

No fundo, na formatação destas políticas culturais subjaz um maior pendor estético do que o que seria suposto, i.e., uma política das artes em vez de uma política cultural de sentido mais amplo e antropológico. Este enviesamento ignora também as recomendações da UNESCO em matéria de políticas culturais para o desenvolvimento humano sustentável, o que pressupõe o direito à autodeterminação em matéria de liberdades e direitos culturais, designadamente com a possibilidade das pessoas viverem o tipo de vida que escolherem e com a provisão dos instrumentos e das oportunidades para fazerem as suas escolhas.

Em Portugal, casos de estudo que evidenciem a dominação da esfera cívica cultural pelos poderes da administração local são diversos, mas exemplifiquemos com os paradoxos gerados pela legislação anti-grafitti, a qual veio a mobilizar os serviços camarários na remoção de grafittis de qualidade artística e técnica reconhecida, bem como a domesticação das práticas oriundas da cultura Hip Hop e do mural político, no sentido da formalização das práticas e com a externalidade - talvez positiva - da criação de uma industria cultural da Street Art administrada e autorizada por entidades oficiais. Num outro terreno, o do Novo Circo, tem havido alguma atenção por parte dos programadores institucionais no agendamento de espetáculos, mas também o correspondente abandono dos jovens grupos que em muitas cidades praticam malabarismos, e que não merecem a mesma atenção dada ao espetáculo programado. Ou ainda as réplicas sucedâneas de prémios “Arte Jovem” - alguns já com décadas de existência - que não passam de exposições rotineiras e conservadoras nos cubos brancos das galerias municipais. E, nesse hiato entre prémios, os jovens artistas são votados ao esquecimento, porque a política de cultura local nem sequer tenta perceber o que é o mundo contemporâneo das práticas artísticas, os debates e as problemáticas existentes glocalmente que afetam as práticas dos jovens e dos menos jovens artistas. Já para não falar na ausência de espaços municipais destinados a servirem de estúdio, espaços de encontro e partilha, espaços de trabalho e experimentação, enfim espaços de vida cultural intensa e quotidiana e não meras vitrinas assépticas. Em tudo isto haverá certamente exceções, mas a regra nacional é este horizonte burocrático da administração do cultural, a valorização do show-off e a negação das condições de desenvolvimento dos agentes sociais, pelo contrário, é o Estado quem se assume como protagonista e produtor cultural.

Muitas interrogações ficam por responder com este novo Ministério e orçamento

Entre as propostas do atual Ministério e do anterior Secretário de Estado da Cultura, há certamente boas intenções e ideias, nomeadamente a de criação do Arquivo Sonoro Nacional que remonta a 2006, anunciada pela então ministra da Cultura Isabel Pires de Lima; ou da transversalidade da cultura e da educação, virtualmente concretizada em https://www.educacaocultura.gov.pt/. Mas muitas outras interrogações ficam por responder com este novo Ministério e orçamento:

- Há alterações no IVA aplicado aos produtos e serviços culturais?

- Como será concretizada a articulação/transversalidade entre Cultura, Turismo, Economia, Ciência, Tecnologia e Educação?

- O que será modificado em torno da cultura digital e do acesso livre aos conteúdos artísticos e culturais?

- O que se fará em prol da melhoria dos Arquivos Nacionais?

- Como se resolveram os problemas de salvaguarda e acesso nos arquivos do ANIM – Cinemateca e da RTP?

- Que inovação política surgirá da integração do audiovisual, imprensa, rádio e novos media na esfera da Cultura?

- Como se concretizará o desígnio da proximidade e de “desconcentrar as competências de tutela patrimonial e de apoio à criação; estimular o trabalho em rede entre Administração Central e Local e entre os agentes públicos e a sociedade civil” (programa eleitoral PS)?

- Quando e como será realizado o alargamento dos canais de TDT?

- Quando se regulamentará definitivamente o Estatuto do Artista (carteira profissional), segurança social e combate à precariedade?

- Qual será a dotação do Ministério da Cultura para o ensino artístico?

- Como comparar as políticas culturais em Portugal com as de Espanha, designadamente com as já implementadas em Madrid e Barcelona, e com as propostas do Podemos?

- Para quando uma Agenda 21 da Cultura em Portugal ?


1 Miranda, José A. Bragança (2002). Teoria da Cultura. Lisboa: Edições Século XXI.

3 INE, Estatísticas da Cultura, 2014 (2015)

4 Barbieri, Nicolás (2015). A legitimidade das Políticas Culturais: Das Políticas do Acesso às Políticas do Comum. Políticas Culturais para o Desenvolvimento – Conferência Artemrede. Costa, Pedro (Coord.). http://bit.ly/1QAQLOx

6 Veja-se o caso do Prémio SPA de Melhor Programação Autárquica: 2015 - Câmara Municipal do Porto ; 2016 -Câmara Municipal de Óbidos.

Sobre o/a autor(a)

Investigador e docente universitário
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