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A cristandade do Bloco e PCP

Como ficou bem notório no último debate do estado da nação, a esquerda à esquerda do PS ganhou a batalha da inclusão nos últimos quatro anos.

Numa semana em que as temperaturas de verão só fizeram jus à "silly season" pelas palavras aterradoras da historiadora Maria de Fátima Bonifácio, é notável assistir à adaptação democrática de tantos contadores de histórias políticas que antes excluíam Bloco de Esquerda e PCP do arco da cristandade do poder, como se de africanos que se detestam "uns aos outros quando são oriundos de tribos ou nacionalidades rivais" se tratasse. Os anos desta legislatura foram um enorme tabuleiro de compromisso e evolução. A exigência de aclimatação aos imperativos constitucionais foi, desde logo, um rude golpe no mundo que corria parado dentro do PSD e CDS. Do choque inicial ao Diabo, da negação petulante à orfandade. A Direita que se vai apresentar a eleições, ainda que receosa da penitência popular, já trilhou o caminho da aceitação. Já não exclui ninguém porque foi obrigada a viver com a ideia. Não há filhos nem enteados na política ou, por outras palavras, nem pretos ou ciganos na doutrina Bonifácio. Já ninguém se exclui por decreto. Todos bons cristãos.

Podemos concluir, como tal, que tanto Bloco de Esquerda como PCP já não são "inassimiláveis"? A resposta está na convivência e é positiva. O poder tem sido obrigado a conviver com eles, eliminando os vícios do "modo disfuncional como se comportam nos supermercados" da política. Os politólogos que enterraram a gerigonça logo nas primeiras horas, soltam agora tímidos "hurras" por estes partidos que "conservam os mesmos hábitos de vida e os mesmos valores de quando eram nómadas". A bem da idoneidade destes partidos, antes excluídos, já se pode até dizer que descendem dos Direitos Universais do Homem decretados pela Grande Revolução Francesa de 1789. No debate do estado da nação, coube a António Costa estender a passadeira universal que Carlos César, tacticamente, tem vindo a enrolar: não há maioria absoluta em perspectiva, não há governabilidade sem a reedição de novos acordos à Esquerda, não há como não haver entendimento após cada uma das partes provar o que vale em voto popular. Já não há alma que acene o papão de que estão "condenados a desentenderem-se", ou de que é uma "questão de tempo" ou de que "lhes falta sentido de Estado". A realidade impôs-se e tem um peso que já nem a demagogia suporta.

Está por encontrar alguma bola de cristal que não vaticine a vitória do PS nas próximas eleições. A próxima legislatura verá, portanto, a primeira geringonça a ser montada com um partido que ganhou, efectivamente, eleições. Não sendo um imperativo constitucional, ainda assim acomoda. Agora que as fichas da cristandade foram distribuídas por todos, é previsível admitir que a forma como a Direita viverá com isso será em tumulto. Bloco de Esquerda e PCP dispensaram quotas porque ultrapassaram a farsa política que fazia de alguns partidos proscritos por antecipação. Esta legislatura que agora finda decretou a morte de muitos dogmas. Mas esta democracia que assim continua, ainda terá que lutar contra muitos parentes de Bonifácio. Basta atentar na reacção dos acólitos da cristandade.

Artigo publicado no “Jornal de Notícias” a 12 de julho de 2019

Sobre o/a autor(a)

Músico e jurista. Escreve com a grafia anterior ao acordo ortográfico de 1990.
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