Está aqui

As crianças são o futuro, mas que futuro terão as crianças?

É fácil esquecer grupos específicos da população quando se elaboram políticas públicas e formulam medidas de combate a uma crise pandémica global. Um dos grupos frequentemente esquecido é o das crianças.

É fácil esquecer grupos específicos da população quando se elaboram políticas públicas e formulam medidas de combate a uma crise pandémica global, abrangente, com consequências a vários níveis da vida em sociedade. Um dos grupos frequentemente esquecido é o das crianças. Não integram o mercado de trabalho, não são profissionais de saúde, não são os consumidores diretos de grande parte dos serviços e comércio. Não organizam protestos ou manifestações. Permanecem invisíveis e silenciosas e adaptam-se como podem às mudanças e às medidas que os adultos tomam em seu nome. Afinal, todos conhecemos a capacidade de adaptação e a plasticidade das crianças, assim como a sua dificuldade em se fazerem ouvir.

A consequência desta falta de voz é um manancial de medidas de proteção sanitária e de combate à Covid-19 que tem ignorado as necessidades específicas das crianças e limitado o seu livre, harmonioso e salutar desenvolvimento físico, mental e emocional.

As medidas temporárias já duram há quase um ano, o que pode ser muito tempo na vida de uma criança.

Ao serem diminuídas as oportunidades de brincar, nos recreios escolares, creches e jardins de infância ou nos parques infantis interditados em praticamente todos os municípios do país, as crianças foram e continuam a ser privadas do desejável contacto com outras crianças, do desenvolvimento do sentimento do coletivo ou de valores como a solidariedade e a partilha – veja-se a recente decisão de suspensão de um aluno por partilhar o lanche com um colega.

Não é difícil perceber que, ao limitamos as atividades extracurriculares e o tempo de brincadeira fora de casa, aumentamos o isolamento, o sedentarismo e o tempo de exposição a ecrãs e isso traz consequências devastadores nas competências motoras, sociais e emocionais das crianças.

Já existem, aliás, vários estudos que comprovam o elevado risco de deterioração do desenvolvimento das crianças em confinamento e isolamento e que apontam para alterações psicológicas, em que os sentimentos mais comuns são os de preocupação, desamparo e medo, para além de registarem episódios frequentes de insónia, tédio e tristeza.

Esses mesmos estudos sugerem a elaboração de conteúdos informativos sobre a doença especificamente orientados para as crianças que permitiam uma melhor compreensão das medidas restritivas e de proteção da saúde pública e a opção por medidas que permitam a não diluição das relações socioafetivas das crianças, devendo as mesmas ser encorajadas a manter a comunicação e a interação com amigos e familiares.

Vários países já adotaram medidas neste sentido, desde a emissão de diretivas nas escolas que permitam às crianças passarem o maior tempo possível no exterior (ou em espaços contíguos à escola, fechando e reservando o seu uso para o efeito), a medidas de higienização realizadas por entidades municipais nos espaços públicos utilizados por crianças em detrimento da sua interdição.

São exigentes os desafios que se colocam nesta época epidémica que atravessamos, mas esses desafios poderão crescer exponencialmente se o que tivermos para ensinar às crianças for o medo da utilização do espaço público, a desconfiança, o individualismo e o policiamento do outro. Assim, cabe ao governo português incluir nos grupos de especialistas de elaboração das medidas de combate à pandemia, à semelhança do que já fazem tantos outros países, entidades representativas dos direitos e proteção das crianças.

Não basta apregoar que as crianças são o futuro. Importa garantir que esse futuro é possível e saudável.

Artigo publicado em “O Setubalense” em 10 dezembro 2020

Sobre o/a autor(a)

Feminista e ativista. Socióloga.
(...)